terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Promessa
















Observando o chiqueiro alheio,
por onde me esgueiro de má vontade
sem convites  para entrar e de onde não conseguem me expulsar,
sigo meus dias renovando meus nãos:
Não serei portadora de envelopes constrangedores.
Não calarei meu humor para evitar o mau-humor alheio
Não fecharei meus olhos para deixar de ver o que deve permanecer escondido.
Não me esconderei pelos corredores infectos e mal frequentados
fingindo que não ouvi meu nome.
Não esconderei de ninguém que percebo tudo.
Não vergarei minha coluna dorsal nem seguirei curvada e de olhos baixos
Não esquecerei.
Não frequentarei as rodas de notáveis desejando que alguém me note.
Não mais renovarei meu luto.
Não chorarei mais os dias passados.

Lavarei teu chiqueiro com água e sabão.
Usarei mangueira de alta pressão.
Esfregarei teus ossos até se tornarem muco.

Do teu muco reconstruirei as casas que ruíram;
Tirarei dos escombros os lares que desmoronaram,
Resgatarei as amizades que se perderam,
Darei nova vida às vidas que se despedaçaram.

Edificarei um monumento à fé que se acabou,
Darei nova forma ao amor que não vingou,
Finalizarei o projeto que não se cumpriu.

E se, no final, mísera fagulha ainda restar de ti,
Estarei em teu funeral.
Em contrição no teu jazigo
prometo cobrir-te com uma pá de cal!

3.ª pessoa
















Ela, sem ele, não registra as palavras...
Ele , sem ela, é o vazio total.
Ela, sem ele, não tem valor.
Ele, sem ela, não tem expressão.
Ela, pronta pra relatar fatos.
Ele, disponível, recolhendo relatos...
Ela, ativa, demarcando contornos.
Ele, passivo, deixando-se desenhar.
Ela, objetiva, definindo seu rastro.
Ele, subjetivo, acolhendo as linhas de um novo percurso.
Ela agente.
Ele paciente.
Ela, contadora de histórias.
Ele, guardador de segredos.
Ela, desprendida de memórias,
Ele, um nostálgico por definição.
Ela, deslizante e insinuante
Ele, plano e sutil.
Ela indicativa.
Ele reflexivo.
Ela, debulhando informações
Ele, recolhendo impressões
Ela, cheia de matizes.
Ele, branco, alvo, intocado.

Ambos crivando lembranças,
Disponíveis para uma história qualquer.
Arquivistas de imagens futuras,
seguem unidos como dedo e anel...
Ela caneta.
Ele Papel.

Esquizofrenia

Foto tirada em abril de 2013 - Rua XIV de Maio, São Paulo



Completamente louca!
É assim que se referem a ela.
Pudera... fala sozinha, caminha em zigue-zague, pulando as peças quebradas do ladrilho das calçadas, fuma bitucas que encontra nos vãos dos bueiros.
Veste-se com sacos plásticos cortados nas laterais e no fundo, por onde passam braços e cabeça, amarrados em pequenos nozinhos, simulando as camisetinhas que avista nas vitrines da 24 de maio.
Fuma, fuma muito...
Dorme numa casa confortável, feita de caixas de papelão, que recolhe, incansavelmente, pelas ruas.
Só uma coisa havia de certa na sua vida: sua casa confortável seria demolida pela companhia de limpeza no sábado! Durante a semana construir, para a demolição certa e inadiável do Shabath, dia do Senhor judaico!
É uma empreendedora. Vitoriosa empreendedora da construção civil, uma verdadeira recordista: quantas casas já foram construídas por aquelas mãos?
Isabel não se preocupava com isso. Recolhia caixas de madeira e papelão, sacos plásticos, garrafas Pet, jornais e revistas. Sua coleta começava já no Domingo, afinal não havia muito tempo para lamúrias. Casa demolida - casa construída!
Sempre muito bem disposta, começava empilhando. Durante o dia tudo o que avistava na calçada recolhia e encostava à porta de ferro da loja desativada. Começava a obra construindo a pilha.
No dia seguinte a transformação inicial: Já começava a surgir um alicerce, feito com revistas e jornais, colocados lado a lado, sem nenhum tipo de ressalva: Veja, Isto é, Playboy, Cláudia, Nova; Folha de São Paulo, Valor Econômico, Folhinha da Universal, catálogo de farmácia, revista promocional de perfumaria... Isabel não fazia nenhum tipo de distinção editorial.
Isabel fazia serão! Esperava que a rua esvaziasse e dava sequência à construção. Lado a lado ficavam o material coletado durante todo o dia e a obra que se desenvolvia, com uma velocidade digna de nota, durante a noite.
No segundo dia da construção já se avistavam lascas de madeiras de caixotes de laranja, devidamente desmontados, revestidos por sacos plásticos, sobrepostos ao alicerce de jornais e revistas que forravam a calçada, era o seu contra piso, posteriormente acolchoado por separadores roxos de papelão, comumente encontrados em caixas de maçã. Simplicidade absoluta sem abrir mão do conforto. Era visível na obra de Isabel a preocupação com a funcionalidade e o conforto. Praticidade também. Seu piso era ao mesmo tempo aquecedor e tapete, almofadas e acolchoado!!
As paredes eram feitas com as abas das caixas de papelão, devidamente separadas da parte maior e empilhadas, uma a uma, como se fossem tijolos. Esta era a parte mais demorada da obra: a alvenaria de abas de papelão, que por serem muito finas, demandavam uma certa engenharia e muita paciência.... Mas a habilidade de Isabel superava também esse contratempo. Muitas caixas eram necessárias. Mas a oferta na rua 24 de maio era pródiga. Não faltavam comerciantes a descartar seu lixo no calçadão.
Às vezes, a oferta era tanta que Isabel se dava ao luxo de rasgar inclusive o corpo das caixas de papelão, utilizando não somente as abas, mas também as tiras que rasgava em igual tamanho para tranformá-las também em tijolos. Afinal, não era sempre que ela se contentava em residir num conjugado. Poderia, se quisesse construir algo maior.
Habilidosa que era, já na quinta feira começava a construção do telhado. As caixas maiores, mais perfeitas, mais inteiras, eram colocadas lado a lado, apoiadas nas paredes de alvenaria do lado mais baixo do beiral. O lado mais alto era geminado à porta de ferro da loja desativada. Caimento perfeito. O acabamento e a impermeabilização ficavam por conta dos sacos plásticos de embalagem das Lojas Marisa. Isabel aproximava-se assim do término da construção. Em breve veria acabada sua casa de paredes cor de terracota e telhado rosa-choque e comemoraria no maior deboche a conclusão do seu vitorioso projeto arquitetônico.
Algumas estacas remanescentes dos caixotes desmontados para o contrapiso eram utilizadas como baldrame e esteio para que o telhado permanecesse intacto, incólume às possíveis intempéries climáticas. Por fim, algumas caixas de sapato com pedrinhas dentro, tampadas e plastificadas, é claro, eram colocadas por sobre o telhado, já devidamente impermeabilizado, sob patrocínio das lojas Marisa!
Estava pronta a casa. Ainda era quinta feira e a obra já estava concluída. Exemplo de cumprimento de prazo que deveria ser seguido pelos administradores públicos. (mas, melhor não falar disso para não estragar a narrativa....)
Eficiente como ela só, sagradamente às sextas-feiras chegava o dia de decorar a casa e curtir os toques finais!
Garrafas pet cortadas ao meio transformam-se em porta-revistas, cinzeiro, moringas, vasos para flores, porta trecos de todos os tipos. O calçadão é sua varanda. Os botequins, que são seus melhores vizinhos, convidam-na para um café, para o PF do almoço. Oferecem-lhe o sanitário, aliás, parte falha nos projetos arquitetônicos de Isabel.
A inexistência de banheiro em sua construção faz com que o banho fique por conta dos lojistas da galeria 77 para onde ela se dirige ao final do expediente. Lá ela se banha. Dormir sem um banho é inadmissível para Isabel, asseada que ela só!
Sentada na varanda, ela lê um livro, parte preservada da coleta-construção!
No sábado Isabel acorda cedo. Coloca suas botas de Xuxa (alcunha que carrega muito a contra gosto), também recobertas por sacos plásticos, afinal, "coisa suja é calçada no centro da cidade", veste sua japona Bege, coloca suas pulseiras, pega sua banquetinha, seu livro, seu maço de bitucas de cigarro, atravessa a rua, senta-se ao lado do botequim e espera. Descansa, conforme manda a lei: "— Ganharás o pão com o suor do teu rosto. No Shabath, dia do Senhor, descansarás!"

Ali, sentada, com o livro nas mãos, tomando o café requentado, morno e melado, observa a aproximação do caminhão da companhia de limpeza...
Antes que o caminhão chegue, olho mais uma vez para ela....
Eu a acho muito lúcida, apesar de vê-la dando uns gritos no calçadão de vez em quando. Mas os gritos somente acontecem quando algum engraçadinho se atreve a sujar sua varanda: o trecho mais limpo da rua 24 de maio é justamente o que Isabel escolheu para fixar sua residência!
É uma figura reconhecida por todos que passam frequentemente por ali: "Bom dia Xuxa"... "Tá bonita hoje, hein?"... Piadinhas às quais ela responde, invariavelmente, com um "carreirão". Diversão pura para os transeuntes, pois as cenas são impagáveis, o "humor-mau-humorado" de Isabel é incomparável e ela é o que costuma-se chamar de "louca-mansa": totalmente inofensiva, apesar de todas as ofensas que o mundo lhe impõe!
Faz a maior falta no calçadão quando seus filhos a levam... Dizem que sofre de esquizofrenia.
Quando em vez eles aparecem, levam-na pra tratamento. Recolhem seus documentos para que ela não fuja.
Neste período o calçadão fica vazio, sem gritos, silencioso!
Mas ela faz falta mesmo é porque, fora ela, acho que ninguém mais naquela rua, que vai da Lateral do Teatro Municipal até a Praça da República, sabe qual é o verdadeiro sentido do verbo CONSTRUIR.

Às 14hs do sábado, depois que o comércio já fechou suas portas e que os caminhões-pipa terminaram de lavar o calçadão, já sabendo que naquele dia, pela enésima vez, não terá um teto de papelão rosa-choque para se abrigar, Isabel vai ao Mercadão. Na volta traz consigo uns caixotes de madeira!
- Empreendedora demais, essa Isabel...