Às vésperas dos meus 47
anos, faço uma reflexão sobre meus 30 anos cantando em coro, sobre a minha vida profissional e a minha
escolha trabalhista.
Minha profissão somente coincidiu com minha escolha trabalhista aos 30 anos, quando abandonei um emprego bem estruturado em um banco estatal e migrei para o trabalho sem nenhuma garantia trabalhista, cantando.
Hoje apresento minhas reflexões sobre a convivência dentro de uma estrutura coletiva.
Profissão e emprego
caminhando juntos, porém não de mãos dadas.
Sim, porque não escolhi ser
cantora. Fui me tornando cantora atendendo a um chamado não
consciente, que contrariava minha têmpera e me jogava em um mundo
não talhado para mim.
O mundo do glamour das artes
difere em muito do ambiente onde me sinto bem. De pés descalços,
roupas e cabelos em desalinho. É assim que me sinto bem.
Mas minha profissão me aloca
em um meio onde a imagem pesa mais do que a conduta.
Sou cantora de Coro. Como
cantora de coro aprendi que a grande característica do trabalho em
grupo e o que diferencia a prática coral da prática solística, é a
aceitação e a absorção das diferenças.
Um coro é um indivíduo coletivo vivo. Possui sua personalidade sonora definida pela somatória dos sons individuais de seus integrantes.
Portanto, impor a um grupo um
padrão sonoro ao qual o grupo deve se adaptar implica em impor uma
ditadura da intimidação já na sua origem.
Qualquer maestro que se poste
diante de um coro, impondo a ele este ou aquele cantor como exemplos
sonoros a serem seguidos, como timbre a ser imitado, para que o resultado
final do trabalho seja satisfatório, desconhece a natureza original da função que exerce e impõe aos integrantes do grupo que conduz uma ditadura da submissão e da destruição
das individualidades, que necessitariam acolhimento na prática
coletiva.
Quem se propõe a reger um
coro deve ter em sua mente que estar diante do canto coletivo é como
estar diante de uma força da natureza. Dona de seu próprio ritmo e
determinante, na sua origem, da sua real forma de subsistência.
Um coro jamais soará como o
maestro imagina. E os grandes maestros sabem disso.
O som do coro será a
somatória das sonoridades individuais de seus integrantes,
perfeitamente harmonizados dentro da prática coletiva.
Portanto, qualquer maestro que
queira impor uma sonoridade a um grupo coral, seja ele qual for,
estará fadado ao insucesso.
Então como é possível que
alguns maestros sejam verdadeiros magos na arte de esculpir e personalizar a
sonoridade de seus grupos, a despeito das características individuais de seus integrantes, e outros sejam os eternos discursantes em
favor do som, que ainda está por ser conquistado?
Simples: os grandes maestros
buscam a riqueza timbrística do grupo que regem explorando ao máximo
as capacidades vocais de seus integrantes, definindo as diferentes
nuances de sonoridade características do grupo que dirigem de acordo com o perfil sonoro do grupo, resultante da fusão de todas as individualidades.
Um bom coro não é aquele que
canta desde pianíssimos inaudíveis até fortíssimos estrondosos. É aquele
coro que é capaz de traduzir em som a suavidade ou o vigor propostos
pelo compositor, através das indicações de dinâmica, dentro de
suas características timbrísticas próprias, sem buscar imitar este
ou aquele registro sonoro existente no mercado, tidos como
referenciais. (Lembrando que, as indicações de dinâmica, às quais os músicos medíocres se curvam, indicam, na realidade, variações de intenção, de ânima, não de volume).
Os registros
referenciais da música coral, como de qualquer outra arte, são
justamente aqueles que não se prestam a imitar ninguém.
Os imitadores jamais serão referência para nada!
E os grandes maestros são os
que rejeitam a imitação. São aqueles que produzem sons
inéditos e eternamente inimitáveis, diferentes de grupo a grupo.
É isso que identifica os
grandes maestros de coro: a capacidade de construir a homogeneidade
através da aceitação da diversidade. O organismo vivo "coral"
somente existe porque não é possível definir o timbre de um ou
outro cantor como o timbre a ser copiado e reproduzido pelos demais
cantores. O Coro somente funciona como tal quando todos os cantores
contribuem com sua parcela em igual proporção sonora, sem que os
integrantes do grupo sejam obrigados a permanecer de joelhos diante
das imposições de gosto de seu maestro, que elege este ou aquele
cantor como exemplo a ser copiado e como objetivo performático a ser
atingido.
Os grandes maestros de coro
são aqueles que aceitam e acolhem as diferenças sonoras dos
integrantes de seus grupos, sem hierarquizá-los de forma perversa.
O oposto desta
conduta é o que gera os maestros medíocres e tiranos, que não
sendo capazes de construir uma identidade musical para seus grupos,
transformam-nos em simples copiadores de sonoridade, destinados à eterna frustração, posto que, uma imitação, por mais perfeita que
seja, é sempre uma imitação.
Incrível como a mediocridade
e a tirania andam de mãos dadas.
Por serem incapazes de
personalizar seu trabalho de maneira eficiente, posto que buscam
sempre imitar exemplos que consideram ideais, em vez de colocar sua
escuta a serviço da aceitação da sonoridade do grupo que tem em
mãos e torná-la típica e eficaz, eternos insatisfeitos, vão se
desfazendo, de maneira leviana, da matéria prima de seu trabalho: seus
cantores. Como quem se desfaz de uma roupa que não cabe mais ou
como quem corta o cabelo de maneira radical para mudar totalmente o
próprio reflexo, indesejado, visto no espelho.
Assim, maestros medíocres
impõe a ditadura do exemplo individual estanque para um organismo coletivo vivo.
Desta forma, na prática coral,
como na vida, fica estabelecido o padrão a ser perpetuamente seguido como exemplo,
desconsiderando que uma vida íntegra, seja de um organismo
individual ou coletivo, tem suas próprias especificações e obedece
a uma lei própria, que não se curva, voluntaria e impunemente, à
imposição da ditadura do padrão estético.
As pessoas se curvarão, por motivos diversos. Mas o organismo coletivo, vivo, resultante da
aglutinação destas pessoas, estará sempre vociferando, a despeito
da vontade consciente de seus integrantes.
A perpétua recusa à submissão gritará silenciosamente contra a intimidação de origem — aquela que renega a natureza
coletiva simplesmente para satisfazer um gosto ou desejo individual — negando ao maestro tirano a sonoridade por ele idealizada, fruto dos concertos que rege em seus sonhos, ainda por serem realizados, ou simples projeções de seus delírios cotidianos.
Esta é a função do canto
coral: demonstrar, através de uma prática coletiva intimista o que
acontece de forma macroscópica na vida; sempre que um padrão
individual é imposto como paradigma para estruturas coletivas, pode
haver a submissão temporária e frágil dos integrantes do coletivo, mas jamais haverá a
serenidade que garante a longevidade e o sucesso, estáveis porém ativos e produtivos.
Esta força está viva, e não se
submete os padrões estéticos dos maestros medíocres,
insubordinados aos ditames da prática coletiva do organismo CORO. Ela é a
força que incomoda os maestros eternamente insatisfeitos, de guilhotina a postos, prontos para degolar os questionadores e porta-vozes da
insatisfação coletiva, que se mantém disfarçada e escondida, sob sorrisos amarelos da
convivência cotidiana, mas que se expressa entredentes, nos bastidores, no recolhimento dos lares, na intimidade dos confessionários, sempre que a
oportunidade aparece, sempre que a voz embarga, sempre que a individualidade é desrespeitada e desconsiderada. E não se iludam, a força vital que caracteriza o organismo CORO permanece viva, mesmo que as diferenças sejam radicalmente extirpadas. Logo surgirão outras diferenças a serem eliminadas.
Pena que a força do coletivo
não esteja amparada pela coragem dos indivíduos, muitas vezes
desestruturados pela própria intimidação inerente ao discurso
propalado pelos medíocres, criadores de uma imagem de beleza,
imposta como correta e propagada como objetivo a ser atingido.
A escolha
profissional, individual, está totalmente subordinada à vida
trabalhista, coletiva e um cantor de coro sabe disso! Abdica voluntaria e, por vezes, inconscientemente, da projeção pessoal para construir uma história coletiva.
Isso explica a eterna
inquietude: enquanto estruturas coletivas forem conduzidas por líderes medíocres, autorreferentes, pasteurizadores de comportamentos, condutas e sonoridades, não haverá possibilidade de
realização individual. Permanecerão todos insatisfeitos, sem nem mesmo saber por quê!
Porque uma liderança tirana por definição é aquela que não respeita as diferenças, não as inclui, não as suporta. É aquela em que o líder não passa de um agente que estabelece a intimidação tácita como paradigma. É aquela que luta contra as diferenças, procurando eliminá-las de forma definitiva, o mais depressa possível.
Como na vida em sociedade, o
Canto Coral precisa se livrar da opressão imposta pela predefinição e
conquistar a sonoridade/imagem resultante da aceitação das diferenças entre
seus integrantes. Isso sim garantirá a realização profissional a
todos, e nos livrará, cantores pelo mundo a fora, de uma subordinação trabalhista, frustrante e
opressiva.
Não precisa ser assim! É possível ser feliz cantando coletivamente...
Aliás, em tempo:
— Onde estão os grandes
maestros de coro?
— Apresentem-se por favor!