Sexta
Feira, 07 de Maio de 2010, 15h 20min.
Antevéspera
do dia das Mães.
Plataforma
11, Terminal Rodoviário do Tietê, São Paulo.
Ônibus
Lotados...
Chegamos
nós três ao mesmo tempo no balcão da Viação Cometa, na
Plataforma 11, com passagens para embarque sentido Jundiaí.
Saída
Prevista: 15h30min.
Três
Passageiros no balcão: Eu, uma mulher e um homem. Éramos três
desconhecidos.
No
balcão, apenas duas canetas.
- Por
favor, preencham suas passagens! Ditava o motorista, postado à porta
do ônibus, verificando bagagens, passagens, documentos, liberando
passageiros para tomarem seus lugares nos assentos numerados...
Homem:
- Dona, o que eu escrevo aqui?
Mulher:
- Seu nome, documento e endereço, não está vendo escrito aí?
Homem:
- Mas eu não sei!
Mulher:
- Como? Você não sabe seu endereço?
Homem:
- Não, é que...
Mulher:
- Ah, essa é boa!
E a
mulher se retira, apressada e arrogantemente, do alto de seu sapato
plataforma e sob seu cabelo cheio de laquê!
Ela
era baixinha, mas tinha um rei tão grande na barriga que,
obrigatoriamente, tinha que usar plataforma e um cabelo bem
estruturado, tudo isso para parecer maior do que realmente era! — NANICA!
Ficamos
nós dois, eu e o Homem, lado a lado no balcão.
Eu,
ele e as duas canetas...
Eu,
que estivera ali ao lado, calada, preenchendo minha passagem, não
pude deixar de ouvir o diálogo entre os dois...
Percebi
o que havia acontecido, intuí o motivo, mas não quis constrangê-lo
com minhas conclusões.
-
Lembrei do Seu Otaviano!
Eu:
- Moço, precisa de ajuda?
Homem:
- É que tem que escrever aqui o endereço, e eu não sei!
Eu:
- Mas o senhor pode por só o telefone e o número do documento.
Homem:
- A senhora me ajuda, dona?
Eu:
- Claro, me empreste seu documento.
Homem
(cochichando): - É que eu não sei ler.
No
documento, a vexatória inscrição “ANALFABETO”, carimbada acima
da assinatura, uma sucessão de garatujas ilegíveis...
-
Lembrei do Seu Otaviano!
Seu
Otaviano era praticamente da família, se eu for considerar que minha
família sempre foi formada mais pelos agregados do que pelos
integrantes natos.
Ele
era amigo do meu pai desde 1958, ano em que meus pais se conheceram.
Seu
Otaviano era baixinho, assim como o Homem do Terminal Rodoviário,
era baiano, assim como o Homem do Terminal rodoviário, era humilde,
simples e gentil, assim como o Homem do Terminal Rodoviário. E era
analfabeto, assim como o Homem do Terminal Rodoviário.
Aliás,
nem mesmo sei por que falo do Seu Otaviano no passado. Ele é tudo
isso até hoje. Baixinho, baiano, humilde, simples e gentil.
Esqueci
de dizer que ele tem os olhos azuis mais sorridentes que eu já vi
até hoje. Ele, apesar de ter mais de 70 anos, chama minha mãe de
mãe e até hoje não consegue pronunciar direito meu nome. Ele me
chama de Tanin, minha fia!
Esqueci
também de dizer que Seu Otaviano é ALFABETIZADO! O analfabetismo
ficou no seu passado.
Esqueci
também de dizer que o Homem do Terminal Rodoviário tem um nome, que
ele não sabe escrever, mas que eu não vou esquecer nunca: José
Francisco.
Não
vou esquecer porque o analfabetismo me acompanha desde que eu nasci,
afinal, nasci analfabeta!
Analfabetos
também eram muitos dos agregados que passaram pela vida da minha
família, assim como Seu Otaviano. Fico feliz em dizer que alguns
deles foram alfabetizados pelas minhas mãos.
- Mas
o Seu Otaviano foi especial...
Ele
foi o primeiro e se alfabetizou junto comigo, quando entrei no 1.º
ano da escola.
Tínhamos
o mesmo material: um caderno brochura pra cada um, um lápis n.º 2,
uma borracha branca e um caderno de caligrafia. A tradicional
cartilha “Caminho Suave”. Esta era única, mas utilizávamos
conjuntamente quando sentávamos à mesa da copa aqui de casa pra
fazer a lição que a Madre Adeodata havia passado para casa.
E foi
assim, fazendo minha lição de casa comigo, copiando as letrinhas
que eu desenhava no caderno de caligrafia que o Seu Otaviano aprendeu
a escrever e, juntando as letras coloridas da cartilha, aprendeu a
ler. Assim ele se alfabetizou. E eu também!
Ele
era baixinho, tinha quase a mesma altura que eu, parecíamos mesmo
duas crianças aprendendo o ABC.
Seu
Otaviano alfabetizou-se pra poder tirar o Título de Eleitor e votar
no meu pai, candidato a vereador na cidade pela 3.ª vez. Nas duas
vezes anteriores ele não havia votado.
Trabalhou
como cabo eleitoral, panfletou, fez boca de urna, mas não entrou pra
votar. Foi barrado no seu direito de cidadão assim como o Sr. José
Francisco quase foi barrado no acesso ao ônibus, por não saber
preencher sua passagem.
E eu,
sem ter consciência disso, na hora em que os fatos aconteceram — quando criança, por ser muito criança, no terminal por estar com
pressa e querer embarcar logo— já que somente nós dois ainda
estávamos de fora do ônibus; acabei contribuindo para que a porta
de ambos não se fechasse.
Lembrei
tanto do Seu Otaviano desde sexta-feira última que hoje, ao voltar
pra casa, novamente vindo de Jundiaí, o vi de longe passando com seu
terno cinza, seu chapeuzinho na cabeça e sua Bíblia em baixo do
braço.
-
Vinha do culto!
Que
bom que ele pode ter na sua cabecinha branca as palavras de Deus.
Melhor ainda é que as palavras de Deus não precisam entrar pelos
seus ouvidos, distorcidas pelas bocas de terceiros, podem entrar
diretamente pelos seus olhos azuis, hoje paramentados com um par de
óculos, já que o tempo deixou, também ali, as suas
marcas...
-
Quanto ao Senhor José Francisco? Bem, ele embarcou em mais uma
viagem, naquela antevéspera de dia das mães...