segunda-feira, 20 de março de 2017

Dia 19 - Paramentos, Padroeiro e outras santidades


Diário da CPTM
365 dias de uma Passageira
19.03.2017 - crônica 2 


Hoje é 19 de Março. Dia de São José, o santo padroeiro da cidade onde nasci, resido, vivo!

Hoje, na minha cidade, em homenagem ao Padroeiro e em comemoração ao aniversário da emancipação local, é feriado. E, além de tudo, é domingo.

Porém, contrariando todas essas informações, que seriam suficientes para que a vida me concedesse o dia de hoje para ser desfrutado como folga, saí cedo para trabalhar.

Habitualmente, aos domingos, vou de carro, já que o trânsito, mínimo, favorece a rapidez da viagem.

Hoje foi uma exceção: um aniversário na família fez com que meu carro, compartilhado com meu marido, ficasse em casa, a serviço dos afazeres da festa - Guilherme, nascido no dia do Santo Padroeiro de Ribeirão, completou hoje 13 anos.

Então, lá fui eu para a estação.
Cidade silenciosa e recolhida.

Seria um dia cheio: previsão de um desfile cívico comemorando a emancipação do município. Festa em família... Uma missa no fim do dia em honra do padroeiro. E eu, mais uma vez, correndo para embarcar numa composição da CPTM, rumo ao Theatro Municipal de São Paulo.

Como de hábito, redigi minha crônica, "quase-diária", dentro do trem. Falei da fé, da tentação e do propósito.

E acho que o dia de hoje estava propício para os assuntos da santidade! 

Utilizo o tempo do percurso Ribeirão Pires-Brás para registrar minhas impressões de tudo o quanto acontece nos trens da CPTM. Falo sobre qualquer assunto que me toque. Desde as situações às pessoas, dos dramas às comédias, do concreto ao abstrato.

Não há uma regra para meus temas.

Hoje foi assim... já havia falado das funcionárias da FAÍSCA, que merecem minha total admiração. E hoje descobri que existe uma outra empresa de limpeza que atua na CPTM: TONANNI.
Mas a empresa não me importa. A mim, importam as pessoas...

Hoje, ao chegar no Brás, absorta pela finalização da minha crônica diária, falando da tentação e do propósito, terminando ainda o último parágrafo, ouvi o aviso de chegada à estação e o sinal de abertura das portas. Ainda sentada, redigindo o final da crônica, sem maiores conferências, dei o "publicar", levantei e desembarquei...

Encarei as escadas, caminhei pelo saguão da interligação CPTM-Metrô e, ao chegar no bloqueio, repetindo meu habitual gesto condicionado de ajeitar a bolsa no ombro para cruzar as catracas, me dei conta de que meu ombro estava leve e vazio... 

Eu havia esquecido minha sacolinha, com as roupa do concerto, os sapatos, as partituras, ... tudo, ... tudo dentro do trem!

Saí de casa cedo, para cantar no Theatro e, naquele instante, me vi privada dos paramentos todos que necessitaria para subir ao Palco.

Dei meia volta e corri loucamente em direção à plataforma da CPTM, sem muita esperança de sucesso.

Chegando, procurei pela segurança da plataforma, já que o trem trafegava para fora da plataforma, sendo recolhido. 

Ela me indicou os profissionais de limpeza, que verificam os vagões antes de liberar a composição para o início de outra viagem.

Ali, na extremidade da plataforma, ao lado de um armário de alvenaria com portas de vidro, encontrava-se um senhor uniformizado, em trajes que indicavam, ser ele, funcionário da Tonanni.
Ao ver que me aproximava desesperada, ele tranquilamente abriu as portas de vidro do armário de alvenaria. Como por um milagre, vi surgir, de lá de dentro, minha sacolinha, contendo meus paramentos todos, intactos, antes mesmo que eu tivesse dito a ele o que procurava. 

Ele já sabia!

Aproximou-se serenamente, estendeu o braço e na extremidade de sua mão pendia minha sacolinha contendo meus pertences. 

Contrapondo-se à minha ansiedade, perguntou-me calmamente:
- É sua?
- Sim senhor! O senhor salvou meu dia! Muito obrigada!
- De nada, moça. Boa sorte.
- Por favor, qual é seu nome?
- José. 

Naquele momento entendi que ao embarcar no trem para trabalhar, logo cedo, em pleno feriado municipal, enquanto tantos outros desfrutariam daquele dia de folga, fui contemplada com a companhia do Santo Padroeiro da cidade onde nasci.

Ele foi, hoje, meu anjo da Guarda que, curiosamente, decidiu se paramentar de profissional de limpeza da CPTM.

Dia 19 - Tentação, Propósito... Tentação outra vez!

Diário da CPTM
365 dias de uma passageira
19.03.2017

A CPTM é um universo à parte. Já  disse isso antes e, antes que me acusem de ser repetitiva, quero declarar: vou me repetir inúmeras vezes, porque só detecta diferenças aquele que não olha o mundo de relance.
Tenho o universo da CPTM como cenário quase diário. Mas o encantamento que sinto não se dá pela visão das coisas, mas pela escuta das pessoas.
Escuto quase tudo. Escuto demais, escuto bem.
Meu ouvido detecta ruídos que quase ninguém ouve e isso, no mais das vezes, é um incômodo.
Mas quando estou na CPTM uso os ouvidos pra viajar nas vidas que não conheço, aprendendo com elas coisinhas que devo e, principalmente, o que não  devo fazer.
Aprendo truques de auto-maquiagem, dicas de limpeza, estratégias de marketing e abordagem comercial, análise politico-econômica, culinária, psicologia, sedução, regras de boa-(e não tão boa)-vizinhança...
É um universo rico, transitando sobre trilhos de uma via sucateada por anos de falta de investimentos e manutenção.
E mergulho nessa riqueza humana, bebo dela e desembarco, diariamente, levando sempre  uma informação nova.
Hoje aprendi sobre a tentação e o propósito...
Considero que uma das grandes riquezas da CPTM são as funcionárias da FAÍSCA,  empresa de limpeza terceirizada que mantém limpos os banheiros, acessos e estações da CPTM.
Posso garantir: eita pessoal que trabalha!
Utilizo com frequência os banheiros das estações pelas quais transito e nunca me deparei com um banheiro sem condições de uso.
Considerando a quantidade de passageiros/dia, é obrigação minha afirmar: esse pessoal da FAÍSCA é fogo!
Hoje, entrando na estação  de Ribeirão Pires, ouvi um diálogo entre duas meninas da FAÍSCA.
São meninas de aproximadamente 50 anos. Ambas negras. Ambas com sobrepeso e olhar vivo, porém resignado. Ambas de riso alto, beirando a gargalhada. Ambas de passos lentos e parecidas fisicamente. Parecidas também na fé.
Caminhavam e conversavam... e eu, de ouvidos, caminhando atrás delas:
- Mas não pode ser, irmã! Não tá certo isso!
- Mas é a vontade de Deus, irmã...
- Mas Deus, então, tá querendo errado, irmã!
- Misericórdia, irmã!
- Então agora pode isso, irmã? Eu já tenho um marido ( disse indignada...). Aí Deus cisma, vem e bota outro homem no meu caminho?
- Deus age assim, irmã! Bota a tentação pra medir o tamanho do seu propósito. 
- Tá certo não, irmã! Então é  pra isso que serve a tentação? Já não tá bom o tamanho do meu propósito?
- Ora, irmã,  ora que a tentação passa.
Hoje aprendi que Deus "cisma"...
Aprendi também que tentação é coisa que dá, mas passa...

quinta-feira, 9 de março de 2017

Dia 18 — Vertigem


Diário da CPTM
365 dias de uma passageira.
09.03.2017

Estou dentro do trem. Ele se move, mas nem sempre...

Às vezes, mesmo parados, temos a sensação do movimento, provocada pelo movimento no entorno. A percepção de que algo no entorno se moveu faz com que nos sintamos também em movimento.

Aqui, dentro deste trem, esta sensação é presente, mesmo que ele esteja parado.

Às vezes a sensação é tão real que nos sentimos até em desequilíbrio. Um desequilíbrio que rompe a inércia do repouso. Mas permanecemos parados.
Hoje, dentro deste trem parado, observando a composição vizinha, que de fato se movia, tive esta percepção de vertigem do tombo estacionário: Estava parada, achando que me movia e quase precipitei em direção ao chão...
Eu achando que me movia me deparei com a sensação de que o mundo se movia em torno de mim.

E esta percepção enganosa, que muitas vezes nos coloca no centro do mundo, nos transforma em vértices de convergência dos interesses todos. Nos faz importantes em demasia.

Mas, assim como a ilusão de movimento, que sentimos no trem parado, quando algo no entorno se move, também a sensação de importância exacerbada é enganosa. 
Que movimento é esse, afinal?
Ouço, com frequência, o termo "movimento" e esta divagação sobre movimento enganoso me conduz a um dilema contemporâneo

Movimento, agora, é um termo que tem sido usado para designar atos, manifestações, protestos...
Hoje em dia tudo é "movimento".

Triste, percebi que nunca estivemos tão parados!

E o entorno avança, galopa sobre nossos direitos, avança sobre inúmeras conquistas, atropela anseios e planos.

O entorno gera a vertigem do tombo estacionário.

E cairemos justamente por termos permanecido estacionados.

Salto na próxima estação. Cheguei ao ponto final.

Espero que, ao descer desta composição, meus pés deem fim a esta ilusão de movimento estacionário e meu caminho me conduza, segura, de volta pra casa.

Meu amor, chego já...

* pro meu parceiro de todos os dias, pelo dia de ontem que, comemorado pelo mundo, em homenagem às mulheres, foi também dele.... minha metade. Com quem divido a vida, os repousos e os movimentos todos.
Porque ele me move.

quarta-feira, 8 de março de 2017

Dia 17 - Meu dia de absoluta vergonha.

Diário da CPTM
365 dias de uma passageira.
08.03.2017

Somente agora, em pé,  no trem lotado da CPTM, assisti o vídeo que mostra João Vitor sendo arrastado pelos seguranças do Habbib's, já desfalecido, seminu, para ser largado em uma calçada, como lixo, enquanto seus agressores retornam tranquilamente ao trabalho, alheios às cameras de segurança que os flagram em inquestionável homicídio.

Ontem, da janela do Metrô, vi, do alto da linha vermelha, chegando à estação D. Pedro II, policiais e um caminhão caçamba e diversos trabalhadores braçais  desfazendo e recolhendo os abrigos precários de cidadãos em situação de rua. É possível que tenham ficado para trás os moradores, excluídos socialmente, abandonados e desabrigados...

Em contrapartida, na bolha que frequento, onde vivo cotidianamente e com as pessoas com as quais me relaciono, a discussão existente paira sobre ser ou não pertinente tirar selfies em espetáculo artísticos...

O espetáculo real está acontecendo diariamente, diante dos nossos olhos e é um espetáculo deplorável!

A alienação e o individualismo avançam de forma voraz, se instalando dentro das vidas de todos, de forma irreversivel, me parece.

Nesse processo não são poupadas nem mesmo as criancas que mendigam comida de fast food, para saciar sua fome e seu desejo, inflados diariamente pelos ataques de marketing, pelas vitrines amplas que expõem o "paraíso" reservado a poucos e ao qual "aquela criança" não terá, jamais, acesso.

Ao mesmo tempo passam por processo de flexibilização as leis contra a mão de obra escrava, que camuflam condutas de exploração humana já apuradas, constatadas, mas ainda não julgadas, envolvendo grandes mandatários da política nacional.

O núcleo de beneficiados pela restrição à informação voltará a existir, de forma oficial, através da reforma do ensino básico, que norteia os conteúdos programáticos das escolas, pois a reforma do ensino somente incidirá sobre os alunos do ensino público, condenando novamente aqueles que não pertencem às camadas mais favorecidas da sociedade à desinformação e ao desconhecimento, num padrão  similar ao analfabetismo endêmico já vivido no país,  até cerca de duas décadas.

Todos os avanços éticos e morais, conquistados em anos de luta das minorias, correm o risco de não se consolidar, sucumbindo a uma onda conservadora de precedentes assustadores no Brasil e no mundo.

Seguem a toque de caixa no congresso as reformas que alterarão conquistas trabalhistas de meados do século passado, colocando o Brasil numa condição semelhante à vivida durante o período colonial.

Ascendem novamente ao poder, de forma hegemônica,  os representantes de uma casta dominante que pouco se importa se uma criança é morta por pedir comida, se cidadãos não tem acesso à moradia digna, se alunos seguem privados de seu direito ao aprendizado amplo e se trabalhadores, que são a mola propulsora da economia, se vêem em vias de retroceder a padrões trabalhistas semi-escravocratas, de forma oficial, numa supressão de direitos legitimada pela lei.

Imbecis manipulados discursam e propagam sua ignorância tosca, obtusa e arrogante, reproduzindo discursos de exclusão,  recheados de termos acadêmicos como "meritocracia", "produtividade", "plano de metas", "ação bem sucedida", "estratégia vitoriosa"... e seguem ladeados por uma imensa horda de fundamentalistas que vomitam salmos e praguejam penas e punições contra aqueles que não seguem as normas de conduta que, no mais das vezes, nem eles mesmos adotam em suas intimidades mais íntimas e inconfessas...

Somos isso. Assim nos definimos como país. E, hoje, mais do que nunca, desembarco deste trem lotado cheia de vergonha por fazer parte desse jogo sórdido de autoflagelo.

O Brasil não tem conSerto!