Diário da CPTM
365 dias de uma passageira
29/11/2016
Pra Aline Réa.
O trem é um mundo à parte. Mas os trens da CPTM são uma verdadeira Galáxia.
365 dias de uma passageira
29/11/2016
Pra Aline Réa.
O trem é um mundo à parte. Mas os trens da CPTM são uma verdadeira Galáxia.
Várias
situações orbitam simultaneamente dentro de um vagão, numa velocidade tal que,
se situações semelhantes acontecessem no céu, o mundo já teria se auto destruído
e nossa querida Via Láctea já teria se transformado em um buraco negro de
proporções capazes de engolir e absorver todo o Universo.
Vemos
ambulantes, pedintes, mães com crianças no colo, em pé, enquanto o bonitão
“dorme” sentado no banco preferencial... Vemos celulares e mais celulares, de todos
os modelos e cores, tamanhos e definições, acomodados nas mãos, lateralmente perfiladas, dos passageiros que entram no vagão e saem do mundo, mergulhando nas telas dos aplicativos de música ou nas realidades paralelas das redes
sociais, onde só transitam os lindos e felizes desse universo massacrado.
Hoje,
na ida para o trabalho, encontrei um microcosmo gigantesco, viajando dentro de
uma bolsa de mulher.
Uma
bolsa laranja, até que discreta, não fosse pela cor: vibrante como os
utensílios que dentro dela viajavam, levados para dentro do vagão pela moça
que, ao sentar, iniciou uma verdadeira transformação...
A
moça embarcou uma estação depois de mim.
Sentou-se em um dos bancos laterais, no assento do corredor, que vagou
assim que ela entrou. Eu, sentada em ângulo reto com a moça, pude observar toda
a movimentação.
Num
misto de surpresa, admiração e inveja eu a vi promover uma mudança
indescritível, mas, vou tentar descrever.
Entrou,
sentou-se, acomodou as duas bolsas sobre o colo (uma lisa, cor de laranja, de
onde sairia a transformação, como saem coelhos da cartola de um mágico, a
outra, listrada, onde talvez houvesse um lanchinho...)
Cabelos
presos em um coque fixado no alto da cabeça com um espeto oriental. Rosto
lavado, fone nos ouvidos.
De
repente ela abre a bolsa laranja e, de dentro dela surge uma outra bolsinha
menor, fechada por um zíper.
Começa
o processo: como numa bancada de penteadeira ela organiza sobre o colo duas
embalagens, uma esponjinha rosa e um pincel de cerdas abundantes.
A esponjinha,
friccionada no conteúdo da primeira embalagem, é utilizada para fazer a cobertura
da pele, que aos poucos vai se uniformizando, igualando-se em textura a cor.
Na
sequência o pincel de cerdas abundantes entra em ação. Ela o gira, determinadamente, sobre o
conteúdo da segunda embalagem que, suavemente se esfarela, produzindo um pó
finíssimo que adere ao pincel e vai do pincel ao rosto, em movimentos
circulares e suaves e, ao mesmo tempo, constantes e vigorosos, dando à pele,
uniformizada pelo conteúdo da primeira embalagem, uma aparência sedosa e
iluminada.
A
moça recolhe novamente as duas embalagens e as reconduz para o interior da
bolsinha com zíper que, ao final, voltará para o interior da bolsa laranja.
Mas o
processo continua e mais duas embalagens saltam para fora a bolsinha com
zíper... e mais um pincel, de extremidade fina e esponjosa.
Agora
o alvo da moça são seus olhos: ela os adornará utilizando um trio de cores,
dispostas em três pequenas divisórias, dentro da embalagem que estava na
bolsinha com zíper, na bolsa laranja.... Utilizará o pincel esponjoso. Com a pontinha
do pincel fará o contorno preto em torno dos cílios, com um traço tão fino e preciso
que pareceria impossível ter sido traçado dentro de um trem em movimento. Mas ela o fez com
perfeição.
Na
sequência passa a colorir as pálpebras, alterna duas cores em tons degrade, dando
aos olhos definição, profundidade, expressão e brilho. Volta a embalagem para a
bolsinha e abre a segunda embalagem, que se encontrava sobre o colo, aguardando….
Era
uma embalagem em formato cilíndrico que, desrosqueada, fez surgir um pincel de
cerdas curtas, firmes e circulares, que deram corpo e volume aos cílios. Tudo
isso segurando o espelho com uma das mãos, numa manobra de extrema habilidade.
Já
não era a mesma pessoa. Daquela bolsinha
ainda saiu um batom cor de boca, um par de brincos, um anel e uma escovinha que delicadamente
penteou as sobrancelhas.
O
toque final ficou por conta de uma esponja grande, redonda, que ela pressionou sobre
a pele, tirando os excessos...
O resultado era inacreditável!
Guardou tudo na bolsinha com zíper, devolveu-a à bolsa laranja e, quando eu já tinha dado a transformação por terminada, a moça sacou de dentro da bolsa laranja um saquinho de veludo azul, do qual saiu um alicate de cutículas, e um vidrinho de esmalte incolor!
A moça aparou os excessos de pele do contorno das
unhas e as fez brilhar, usando o esmalte.
Agitou as mãos rapidamente para que secassem enquanto eu olhava e pensava:
se fosse eu estaria, nesse instante, com as pontas dos dedos sangrando.
Qual
o quê: unhas perfeitas conquistadas entre as estações Utinga e Tamanduateí!
Finda a mutação, guardou o kit manicure no saquinho de veludo, devolveu-o à
bolsa e tirou de lá uma caixinha, da qual surgiu um gigantesco par de óculos de
grau, estilo aviador, com armação dourada.
Era
a moldura que faltava para a transmutação se dar por completa.
Já
na estação Mooca, com os utensílios guardados em seus respectivos lugares, preparou-se
para descer no Brás.
Da
bolsinha listrada, que ainda não tinha sido utilizada, onde eu
acreditava que houvesse um lanchinho, por conta da lata de refrigerante
aparente, saiu um saquinho, do qual a moça retirou um par de sapatos com saltos altíssimos!
Calçou
sem cerimônias, guardou tudo e levantou-se, rumando em direção à porta do vagão
para o desembarque.
Eu
permaneci ali, sentada, durante alguns segundos, tentando me imaginar em situação
semelhante, promovendo uma verdadeira reforma de imagem no percurso Ribeirão
Pires – Brás!
Ela
desceu. Eu desci também. E
desci refletindo sobre o ocorrido. Me percebi tomada pela mais absoluta preguiça de
fazer o mesmo. Pensei em quantas mulheres driblam o sacolejo do
trem para
valorizar a própria expressão com uma maquiagem bem-feita.
— São admiráveis!
Eu, ainda absorta com o ritual que observei, do início ao fim, somente após
desembarcar foi que me dei conta que durante toda a viagem a moça esteve de chinelos...Ao pé da escada rolante a moça puxou o espeto oriental que fixava o coque, deu uma leve agitada na cabeça, olhando para os lados, alternadamente, fazendo arejar os cabelos e deixando-os cair sobre os ombros. Seguiu a passos firmes, aparentemente determinada, confiante que só ela.
Compreendi tudo quando vi que a moça, nas costas expostas pelo modelo da blusa, ostentava, tatuada, uma borboleta.