365 dias de uma passageira
15/11/2016
A CPTM é um universo à parte!
Tudo o que acontece dentro de um vagão reproduz, de forma perversa, aguda e escancarada o que acontece nas ruas, nas casas, no mundo e fingimos não perceber.
Quando acontece nas ruas, temos a opção de cruzar a via, mudando de calçada, desviar o olhar para uma vitrine, protegendo as retinas desta ou daquela aberração. Podemos construir um discurso sociológico desonesto, transformando vítimas em algozes, vilões em heróis em uma fração de segundos. Isso quando você está livre para ir e vir, falar o que quiser e deixar os ouvintes a ver navios.
Mas, quando a coisa acontece dentro de um vagão de trem, aí, meus caros, a coisa muda de figura.
A não ser que o trem esteja parado na estação e você tenha a opção de descer. Caso contrário você está trancafiado ali, vivendo aquele universo paralelo, sem opção de fuga enquanto o trem transita entre uma estação e outra.
E é aí que a porca torce o rabo.
Porque você ouve pregadores sem ter ido à igreja. E a religião se transforma no mais vigoroso instrumento de tortura existente. Não há fé que resista aos pregadores de trem, invariavelmente usuários do mais estridente timbre de voz possível, aliado a uma arrogância aguda, que não pode ser de Deus, de jeito nenhum.
E os caras gritam, com gosto! Deve ser um prazer quase carnal aqueles gritos! Gritam numa intensidade de fazer corar qualquer Mc de responsa! Não há projeto "PSIU!" que sobreviva a um pregador de trem. E a autoridade? É uma autoridade que não coaduna com a humildade de Cristo, em nome de quem todos eles, invariavelmente falam.
E os leilões?...
Você já foi a um leilão? Não?
Então venha fazer uma viagem de trem.
Tem leilão de chocolate, de pendrive, de fone de ouvido, de picador de alho, de balinha em pó com pirulito. Ali vendem até a mãe lavando roupa no tanque, sem remorsos! E, olha, o melhor momento do pregão é quando, em manobra ensaiada com perfeição, dois vendedores aliados se comportam como concorrentes.
Iniciam a venda oferecendo dois chocolates por 1 real. Aí o aliado ( que banca o "concorrente") grita: "gente, é melhor vender barato do que perder pro Rapa" e oferece o mesmo chocolate do rival (que na verdade é aliado) pela bagatela de 4 chocolates por 1 real. Fala sério: uma barbada! E o desfecho é lindo.... quando o primeiro a oferecer seu produto no leilão se irrita (de mentira, é claro) e diz: Ah, não! que é isso, mano, assim você me quebra. 4 por um e muito barato! ah, mas vc quer me quebrar? então lá vai: aqui comigo, 6 chocolates por um real. A arquibancada vai ao delírio! é um tal de chocolate rodando no vagão que daria pra fazer inveja ao coelhinho da Páscoa ( ah, na páscoa tem pregão de ovos pra comemorar a ressurreição do menino Deus... que os pregadores não me ouçam).
Tudo isso acontece nos 5 breves minutos que separam, em média, uma estação da outra. E os vendedores dão fim a cerca de duas caixas de chocolates em menos de cinco minutos. A bolsa de valores deveria contratar esses caras! leiloeiros de primeira.
Mas, os negócios no vagão não se restringem à venda de chocolates e utensílios....
Existe também o ramo das esmolas.
São pedintes de todos os tipos.
Grupos organizados que distribuem santinhos com solicitações de auxílio a casas de recuperação, são crianças, vigiadas por adultos, que passam papeizinhos pedindo ajuda pra comida dos irmãos em casa, são adultos com crianças de colo pedindo ajuda pra comprar o leite das ciranças.
Pego o trem há anos e há anos vejo um cidadão que pede ajuda pra sua filhinha Giovana, que tem 1 aninho e ficou em casa chorando de fome.
É duro, pai de família, mãe de família, deixar a filhinha chorando e vir pedir no trem. É duro, pai de família, mãe de família...
Sim, é duro! Mas, do tempo que eu viajo de trem e do tempo que essa Gionava está chorando em casa com fome, das duas, uma: ou a Giovana não existe ou ja deve estar adulta e esse pai segue pedindo auxílio em memória do tempo em que ela era criança ...
Assim acontece também com inúmeros pedintes doentes, com diversas mães desempregadas, etc.
É a profissionalização da desgraça alheia!
Sim, porque existem "Giovanas" chorando de fome, existem doentes em fase terminal, existem crianças precisando de comida pros irmãozinhos menores. E existem aos milhares por todo o país. Mas eles certamente não estão representados nesta indústria de pedintes do trem.
Todas caras conhecidas dos habituèes do trem. Tanto que nem pedem mais pros passageiros habituais. Pedem somente para as carnes novas do pedaço. Vítimas novas do estelionato da miséria sobre trilhos.
Eu, por exemplo, reconheço um estelionatário pelo tom de voz. Dou esmolas, sim! Mas somente quando a voz é fresca no vagão. Meio tímida, envergonhada. Aquela vergonha de quem não queria estar ali fazendo aquilo. Este, diante dos demais, ensaiados, recitando dia após dia, a mesma ladainha cadenciada e ritmada, é o verdadeiro necessitado!
Mas há um caso individual que é digno de nota.
Presenciei a situação e fico só de olho quando a protagonista do golpe passa pelos corredores da linha Turquesa mendigando ajuda, depois daquele dia revelador.
É uma senhora, de voz metálica, que passa dizendo: "Meu senhor, minha senhora, dez centavos, cinco centavos, um passe, um vale transporte. Qualquer ajuda serve, meu senhor, minha senhora..."
É uma senhora que inspira compaixão pois está sempre com a mão estendida, fitando nos olhos de quem a olha. Detalhe: fita com um olho só. Ostenta no rosto a cavidade de um globo ocular vazio, aberta, exposta, causando piedade nos passageiros novatos.
Digo isso porque, há anos transitando pela Turquesa, certo dia presenciei uma discussão:
— A senhora não tem vergonha não? Ficar pedindo no trem?
— A senhora tem o que a ver com isso, hein? Eu peço porque preciso!
— Precisa nada. A senhora desce todos os dias na estação Mauá e vai pro Bingo! Canso de ver a senhora lá jogando!
— E daí? A senhora não vai também jogar? Não gosta de jogar? Eu também gosto! Não posso não? Só a senhora é que pode é? Se eu tivesse dinheiro pra ir jogar no Bingo, não tava aqui pedindo. Peço mesmo. Quem me dá, dá porque quer! Se me dão, o dinheiro é meu e eu faço o que quero com ele, a senhora não tem nada a ver com isso!
Depois de receber essa aula de sofisma, a interlocutora levantou e foi para a porta do vagão, indicando que desceria ali, indignada com a desfaçatez da pedinte.
Dado o sermão a senhora, de um olho só, chegando à estação Mauá, onde também desceria a outra senhora, sua interlocutora na discussão; guardou as moedas na bolsa. Em seguida enfiou a mão no bolso, sacou um objeto e encaixou na órbita vazia: um olho de vidro, tão azul quanto o olho normal com o qual fitava os passageiros ao pedir auxílio, confirmando a máxima que diz: Em terra de cego, quem tem um olho é rei, ou vai ao Bingo... ou à Roma, já não sei mais!
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