sábado, 17 de agosto de 2019

Faísca



Às vezes eu perco o sono. É raro, mas acontece. Hoje é um desses dias. Morfeu não quis me abraçar…
A casa, silenciosa e apagada. O único cômodo aceso é meu cérebro, por onde as caraminholas passeiam desavisadas e indecentes...
Penso bobagens, crio planos, construo estratagemas.
Elaboro estratégias que certamente não seguirei. Mas, crio, mesmo assim! Elas me servirão de repertório imaginário para o momento exato da ação. Momento que nem sei se virá, mas, para o qual estarei pronta!
Assim funciona minha cabeça. Incansável e insana. Exausta. Precisando extravasar o desejo de revirar o mundo.
Que mundo besta!
Neste mundo besta, levo a vida fazendo coleta. Coleto imagens, coleto sons, coleto informações, coleto curiosidades, coleto desapegos e desafetos. Coleto carinhos e afagos. Coleto esperanças e filas de espera. Coleto naufrágios e portos seguros. Coleto frutas amargas, flores secas, chão sem vida. Coleto fruteira colorida, vaso desabrochando e terra adubada. Coleto mudança, novos ares, horizontes distantes e disponíveis. Horizontes verticais, horizontes montanhosos, horizontes beira-mar.
E nessas coletas todas vem gente também…
Gentes de todos os tipos. Alguns de coração latejante. Outros empedrados. Olhos vivos, outros vidrados. Hálitos frescos, peles mornas, mãos firmes… alguns pés descalços. Várias almas empoeiradas: prateleiras esquecidas de memórias não usadas. São gentes de todos os tipos!
Coleto a friagem, que me encatarra o peito e embarga a voz. Nasce um pigarro, e vira tosse. Se mimetiza em escarro que põe pra fora o palavrão que não gritei, o insulto que não revidei, a provocação recebida que ficou sem resposta.
Provocações: Não as respondo mais!
Porque a vida me provoca de várias formas e tenho escolhido as mais leves.
Tenho escolhido a leveza da risada dos Patetas, o latido estridente da cadela de cauda longa, a preguiça prolongada da gata de olhos grandes, o cheiro do café com cigarro que acorda a casa.
Tenho escolhido aumentar a família com filhos que pego por empréstimo por algumas horas…
Tenho escolhido caminhar em busca. Tenho escolhido querer mais.
Mais gentes e mais coletas!
Coletas que me tirem o sono com planos mirabolantes. Coletas que me instiguem por caminhos pelos quais nunca passei. Coletas que me apresentem seres iluminados e generosos, que me peguem pela mão e me digam:“Vem, você consegue!”
Quero coletar histórias, coletar memórias e descartar rancores. Quero descartar o ranço dos que foram carcomidos pelo fracasso.
Quero oferecer adubo a quem quiser florescer. Quero deixar exemplo pra quem quiser crescer.
Cansaço imenso de olhar pela janela da desesperança e só ver derrota. Estamos derrotados. É fato!
Fomos vencidos pela discórdia e pelo retrocesso. Fomos vencidos pelo lamaçal que nos envergonha mundo afora. Fomos vencidos pela usura, que especula com nossos bolsos e nossas vidas, nos dá tostão de troco e ainda nos confisca o direito de escolha. Fomos vencidos. Fato.
Mas, não há derrota para aquele que mantém o cérebro aceso!
E meu cérebro é meu sótão, que permanece claro no meio desta escuridão. Ela não conseguirá me engolir!
Meu cérebro, agora, cataloga amigos novos, que chegam afins e caminham juntos.
Meu cérebro se ilumina com o gesto de acolhimento e impulso em direção ao novo.
Quero ir!
E eu vou! Tenho pressa.
Quero cerrar fileiras, quero ir à luta. Quero travar a batalha final. Derradeira. Depois dela serão somente louros. Não haverá grilhões. Não haverá impedimentos; não haverá obstáculos humanos, desumanos ou sobrenaturais que fechem caminhos ou bloqueiem passagens. Não haverá! Porque um único ponto de luz ilumina uma vida inteira.
Prometeu, com uma faísca, deu luz a toda a Humanidade. Levo comigo esta mesma faísca e, com ela, mantenho meu sótão iluminado.


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