segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Psiu! O silêncio é parte da cura.




Dedicado à equipe de Saúde, Governança e Nutrição do Hospital e Maternidade Brasil,
 Setor 4A.
09 à 16/08/2019



Vrrrrrr, blrum, blrum"... "Vrrrrrr, blrum, "blrum"... "Vrrrrr, blrum, blrum"...

"Toc-toc". "Pclac". "Nhéeeeee"...

- Bom dia! Como passou a noite?
(minha vontade de dizer a verdade é interrompida por um acesso súbito de boa educação. Quase não dormi, entretida  pelo vai-e-vem incessante dos carrinhos das enfermeiras, pelos corredores, madrugada adentro)
- Passei bem, obrigada.
- Que bom! Bem, tenho aqui sua medicação: Solu-medrol, inalação com 5 ml de soro fisiológico, 35 gotas de Atrovent e 5 gotas de Berotec.
- Ok.
- Eu agora vou limpar o seu acesso e você tem também o Clavulonato pra tomar, assim q acabar a inalação.
- Ok. Obrigada!

Assim começou este meu terceiro dia no hospital.

Em dois dias consegui delinear como seria este meu período de cárcere hospitalar, tendo como referência o vai-e-vem dos carinhos das enfermeiras.

Daqui de dentro do quarto é possível vislumbrar as ações, antes mesmo que aconteçam, apenas analisando a onomatopeia dos corredores.

Os carrinhos denunciam tudo.

"Vrrrrr, blrum, blrum"... "Vrrrrr, blrum, blrum"...
"Vrrrrr, blrum, blrum"...
"Toc-toc". "Pclac". "Nhéeee"...

Assim ela adentra meu quarto com seu carrinho, após a suave batidinha à porta: "toc-toc"... Quase inaudível, mas prenunciada pelas rodinhas de seu veículo.

Ela entra com seu carrinho metálico.
Uma coluna de seis gavetas, identificadas por números - uma gaveta para cada quarto. Sobre o tampo, um laptop, um mouse e um aparelho medidor de sinais vitais. Na lateral, um gancho do qual pende um estetoscópio e uma base onde repousa, enrolado, um esfigmomanômetro (Mas pode chamar de aparelho de pressão, que dá na mesma).
Na outra lateral, uma caixa de papelão amarela, com uma abertura picotada no topo, destinada ao descarte de perfurocortantes e um cestinho de lixo comum.
Suportando tudo isso, dois pares de rodinhas maciças de acetato.

Cada carrinho comporta o material médico de seis quartos. Cada quarto, uma gaveta, identificada pelo número do respectivo aposento. No andar onde me encontro são dezoito quartos (todos chiquérrimos).

São, portanto, 3 carrinhos e suas respectivas condutoras: técnicas de enfermagem que os conduzem, freneticamente, de lá para cá, pelos 108 metros de corredores do andar. 42 metros na lateral onde se encontra meu quarto.

Diariamente, inúmeras vezes ao dia: "Vrrrrr, blrum, blrum"... "Vrrrrr, blrum, blrum"...

Essa onomatopeia revela a estrutura dos corredores, cujo piso é revestido de placas de granito, com 60 cm de lado, rejuntadas com cimento branco.

E lá vem o carrinho, deslizando suavemente pelo granito, "vrrrrrr".... Eis que a primeira rodinha perpassa o rejunte, "blrum", a segunda, "blrum" e aí o carrinho retoma seu deslizar sereno novamente. Até que novo rejunte se ofereça como obstáculo ao deslizar da rodinha maciça de acetato sobre o chão, ritmando a passagem das enfermeiras pelos corredores num "vrummmm, blrum, blurum" constante e cadenciado, acompanhado dos "plác, plác, plác" dos saltinhos dos sapatos. 

Sei quando estão chegando as fisioterapeutas pelo "xéinq, xéinq, xéinq" de suas passadas. Todas as fisioterapeutas usam tênis com solado de borracha e o som característico do atrito dos solados com o chão altera o timbre dos corredores em alguns momentos do dia.

Assim, os sons me animam, constantemente, até que adentra alguém pela porta do meu quarto, para romper meu próprio silêncio e movimentar esse claustro que ainda não consigo digerir, nem expelir, completamente.

Esse ritual se repete, religiosamente, durante todo o dia, há 3 dias, obedecendo a prescrição dos medicamentos, pontualmente ministrados pelas técnicas de enfermagem, que se alternam em turnos de seis horas.

Sempre sei quando a medicação vem. Até que ouço um deslizar diferente. Suave... Sem obstáculos.
"Vrrrrrrrrrrr".... "Zzzzzzzzuíp", "tcléexs-tcléexs".
"Toc-toc". "Pclac". "Nhéeeeeee"

- Bom dia!
- Bom dia!
- Trouxe seu café.

Para minha surpresa aquele deslizar suave, seguido por um som opaco e indecifrável, sucedido pelo metálico "tcléexs-tcléexs", vinha do carrinho-buffet, conduzido pela copeira que acabara de me entregar a bandeja com o café da manhã.

Fiquei curiosa. O que seria o "zzzzzzzuíp", som sibilante que precedera o metálico "tcléexs-tcléexs"?

A pretexto de sair ao corredor para realizar a caminhada prescrita pela fisioterapeuta, acompanhei a copeira até a porta do quarto.

E entendi tudo ao me deparar com o carrinho-buffet.

Não era exatamente um carrinho. Era um armário  térmico, alto e largo, capaz de acondicionar as refeições dos 18 quartos do andar. O armário acondiciona, ao menos, 36 bandejas, pois há refeições que se valem de duas bandejas, como o almoço e o jantar. As bandejas permanecem encaixadas em trilhos metálicos e o carrinho-armário fica termicamente fechado por uma capa, semelhante àquelas das quais são feitas as sacolas térmicas (daquelas utilizadas pelas famílias para acondicionar os lanchinhos do bate-e-volta à praia, nos dias quentes de verão). Uma estrutura plástica, cinza metálica, com a espessura de um edredom, provavelmente forrada com uma manta acrílica, reveste todo o carrinho. E, para minha surpresa, essa capa é fechada por um zíper. Também as rodinhas são diferentes. São grandes, de borracha e a estrutura é parada através de um freio de mão, acionado pela condutora, porta a porta, em seu trajeto por toda a extensão do corredor.
Isso explica o deslizar suave e longo "vrrrrrrr", seguido pelo som sibilante, e inédito, até então, da abertura do zíper, "zzzzzzzzuíp", que precede o som metálico das bandejas que deslizam sobre os trilhos, "tcléexs-tcléexs,", antes do suave "toc-toc" da quase inaudível batidinha à porta, que anunciou minha primeira refeição do dia.

Numa comparação grosseira eu diria que o carrinho das enfermeiras funciona como um automóvel, que reduz a velocidade, para rapidamente em uma esquina para realizar uma conversão, à direita ou à esquerda. No caso do meu quarto a enfermeira para, converte à esquerda e adentra com carrinho e tudo nos meus aposentos para ministrar minha medicação.

O carrinho-buffet não para. Ele estaciona.
Trafega pelos 108 metros de corredores tal qual um carro de entrega e estaciona, porta a porta. A copeira-entregadora aciona os freios, abre o armário térmico e de lá retira a refeição-Delivery que chega, quentinha, ao seu destino. Enquanto faz a entrega, a copeira deixa seu carrinho-buffet seguramente estacionado no corredor. Freios acionados, capa térmica devidamente fechada "zzzzzzzzziúp": Feita a entrega, lá vai o carrinho, deslizando suave e silenciosamente sobre suas robustas rodas de borracha.... "Vrrrrrrrrrrrr"...

Assim passo meu dia no quarto do hospital, analisando o tráfego barulhento dos carrinhos pelos corredores, nos quais se pede silêncio.

Duas vezes ao dia o som dos carrinhos muda. De dentro do quarto imagino como seria seu formato. Deve ser grande, pois o ruido é grave. 
Antes mesmo que ele chegue à minha porta, vou ao corredor como quem não quer nada. No quarto ao lado encontra-se um senhor sexagenário. Ele está em pé, de camisola de algodão em padrão hospitalar, meias e chinelos descartáveis. Ao lado, um carrinho branco, largo e de altura mediana. Diria que, se me posicionasse ao lado dele, sua parte superior alcançaria minha cintura. E a parte superior do carrinho possuía duas tampas quadradas. Uma vermelha, outra verde. Sabe-se lá o que haveria lá dentro. Mas o carrinho era um verdadeiro parque de diversões: penduricalhos, panos, frascos de Spray, um balde com escovão, um rodo, sacos pretos que apareciam, como um truque de ilusionismo, saindo de uma cartola de um mágico.
De repente a porta se abre e, de dentro do quarto ao lado, sai uma moça. Ela é baixinha (o carrinho fica até maior perto dela). Está vestida com um uniforme escuro. Calças, blusinha com abotoamento frontal, touquinha nos cabelos e botinhas nos pés. Era a condutora do carrinho!

- Pode entrar, senhor. Já acabei. Se precisar de algo, é  chamar.

Antes que ela me visse entrei no quarto correndo e pulei na cama, (onde se espera que fiquem os pacientes de um hospital).

Em menos de um minuto o "toc-toc" anunciava a chegada da dona do carrinho.

- Bom dia!
- Bom dia, querida!
- Posso tirar o lixo e lavar o quarto?
- Claro! Vou fazer a caminhada...

Me levanto e saio. À porta está o carrinho. Tive que me conter para não levantar as tampas e desvendar os mistérios escondidos em baixo daqueles quadrados verde e vermelho. Mas fui forte! Resisti à tentação. Fiz minha caminhada pensando nas maravilhas que eu faria se tivesse um carrinho daqueles na minha casa...

Esse vai-e-vem onomatopaico dos carrinhos, que perpassa todo o dia, mantém meus ouvidos ocupados e me livra do tédio deste cárcere-hospitalar ao qual estou submetida.

Poderia contar esta minha estada no hospital utilizando outros parâmetros, menos divertidos. Mas não quero.

Sei que muitos enfrentam dilemas, em busca por saúde, muito mais severos do que os meus. Percebo isso nas minhas caminhadas, prescritas pela fisioterapeuta, pelos corredores do hospital.

Sou a felizarda do andar. Posso me distrair com meus olhos de ouvir e meus ouvidos de ver. Não sei ao certo quem ouve e quem vê, mas é com eles que antevejo a ação que se desenrolará em meus aposentos, apenas analisando o frenético movimento dos carrinhos em seu vai-e-vem incessante, de porta em porta, até pararem diante do meu quarto.

Assim passo meu dia. Assim me livro do tédio e assim sigo em tratamento.

O silêncio é parte da cura!
Talvez, para alguns, mas não para mim. Eu me divirto ao constatar que esse "silêncio" não me alcança! 

Aqui, na minha caixola mental, engrenagens, quase tão barulhentas quanto os carrinhos dos corredores, giram incessantemente e fazem minha mente maquinar fugas, planos, ações, revoluções, revelações, discursos e projetos. 

Tenho certeza: estou renascendo e de asas prontas. Prestes a alçar novos vôos. 

Por isso esse retiro!

Por isso, aqui, no meu quarto, a cura se dá através dos ruídos subversivos que me invadem, que de mim saem e até mim chegam, trazidos pelos carrinhos, persistentes e determinados, ou movidos pelas minhas engrenagens internas, ruminantes e incansáveis, que mantém vivo, aceso e sonoro, este meu sótão iluminado.






4 comentários:

  1. Muito legal Tânia!!! Obg pelo carinho 😍 Que Deus te abençoe sempre.
    Boa recuperação.....
    Ass: parte da equipe de enfermagem do A4 com muito orgulho...

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    1. Grande beijo pra voces!
      Muitongrata e levando todxs no ❤

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  2. Admirável tamanha sensibilidade e observação. ...
    O dom da escrita relatando rotinas muitas vezes despercebidas
    Um abrande abraço !!!

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