Ontem me vi ligada a um monitor de sinais vitais, perfurada por um cateter de soro, invadida por drogas que não entrariam no meu organismo, de jeito nenhum, por minha livre e espontânea vontade.
Foram 12 horas desde a entrada no PA até a liberação da internação pelo plano de saúde.
(Um plano empresarial, de faixa elevada, com qualidade crescentemente reconhecida no mercado. Estou em hospital cujo quarto me remete a um SPA, no qual eu não entraria jamais, se dependesse dos meus recursos exclusivos. - Esta é uma das vantagens do cooperativismo: ter acesso a benefícios dos quais não se poderia desfrutar de forma solitária. É a mesma ideia da estrutura previdenciária vigente no país atualmente, instituída pela Constituição Cidadã de 1988 e alvo do desmonte criminoso por parte do atual governo federal e seus asseclas: será o fim da Previdência Solidária e da Seguridade Social. Valores impraticáveis em um governo fascista. Mas... Agora que Toth e Atena voltaram a me visitar, logo escreverei sobre isso. "Fechem-se parêntesis!")
Nas 12 horas em que fui paciente exemplar (porque, haja paciência!) fiz várias auto-análises.
Estou com um quadro de broncoespasmo. E sei exatamente em que momento meu pulmão adoeceu!
"Tristeza mata, Tantan", disse-me há pouco uma amiga.
Mata!
Mas somente se virar pedra. A minha virou catarro, que pretendo cuspir aos pedacinhos.
Deve ser lindo de ver aquela gosminha verde aderindo à cuba branca da pia de mármore branco, no banheiro branco do hospital asséptico.
É uma Vitória! Eu sou uma vencedora.
Cuspirei mesmo, aos pedacinhos, toda a gosma que entrou em mim, há alguns dias, invadindo, inadvertidamente, meus ouvidos. Cuspirei, sílaba por sílaba desse catarro infecto! Está decidido.
Sou um ser híbrido e controverso. Meio humana, meio égua, nesta minha versão contemporânea e feminina de Quiron, o centauro imortal. Dou colo e dou coice. Amo e odeio, em igual velocidade. Afago e afasto, sem menores avisos nem pedidos de permissão. Sou inteligência viva e pulsante, residente num sótão iluminado, mergulhada na animalidade escura do meu corpo carnal.
Não luto mais contra isso.
Não consigo curar meus próprios males, mesmo plena de habilidades para tal. Minha cura se dá quando colaboro com a cura dos outros.
Mas, às vezes, dói!
Dói quando a cura do outro carece de argumentos injustos pra se consolidar. Dói ouvir a dor do outro se lançando sobre sobre meus braços, como trapezista sobre uma rede de proteção. Dói ser o último aparato de preservação de uma vida. Dói não poder escolher não ser a rede. E dói, sobretudo, ter que silenciar acerca disso.
É de tirar o ar.
E por isso meu pulmão se fechou.
Minha língua feroz silenciou.
Meu coração inclemente relevou.
Meu impulso incontrolável foi refreado.
O que seria um diálogo tornou-se uma escuta passiva e, meu silêncio, resfriado e mudo (parafraseando Paulinho da Viola), grudou no meu peito feito visgo.
Ouvi tudo. Ponto a ponto, ciente da injustiça involuntária, promovida pela patologia que provocava a fala. Por isso não revidei. Calei e adoeci. E pedi perdão. Justo eu, que não creio no perdão!
*
Entendo o perdão como um consentimento tácito para erros futuros. O Perdão é irmão gêmeo da Culpa. Ambos filhos da Vergonha e do Arrependimento. Eu acredito em compromisso. Odeio relações de culpa. Amizades não florescem em substratos adubados pela culpa, a mãe de todas as cobranças e parceira de todos os julgamentos.
Hoje sinto culpa por dor antiga de outrem, não causada por mim, mas cobrada de mim.
Hoje sinto culpa por dor antiga de outrem, não causada por mim, mas cobrada de mim.
*
Meu psicanalista me disse, certa vez, que profissionais como ele só são necessários porque os amigos falham. Amigos não são aqueles que falam. São aqueles que escutam.
E é preciso saber escutar e calar de forma saudável. E é preciso ter ouvidos vazios para conseguir calar de forma sadia. Porque tudo o que dói, e não é dito, vira sintoma.
Falhei como amiga. Não tive ouvidos vazios.
Falhei como amiga. Não tive ouvidos vazios.
Em mim, tudo virou catarro.
Catarro que agora cuspirei, aos pedaços, homeopaticamente, na cuba branca, da pia de mármore branco, no banheiro branco do hospital asséptico. Silenciosa, solitária e curativamente.
Apenas eu e ele: este catarro que cuspirei e que, de nada, não me serve.
*
Quiron, centauro imortal, adoece ao ter seu casco envenenado. Uma doença eterna, por força de sua imortalidade. Fora atingido pela flecha embebida no veneno da Hidra de Lerna, que ferira seu amigo. Salvou o amigo, mas foi condenado a carregar eternamente a dor pela cura praticada. Por sua bondade, pede a Zeus que o livre da imortalidade, já que o sofrimento, insuportável, seria eterno. Quiron roga que sua imortalidade sirva para salvar Prometeu. Zeus, condoído, consente. Sem vida, Quiron desce ao Tártaro para, finalmente, descansar como um mortal.
Prometeu, ungido pela dignidade suprema de Quiron, ganha vida eterna. Foi absolvido de seu castigo: Prometeu fora condenado a permanecer acorrentado a um rochedo, tendo seu fígado devorado por uma águia, durante o dia, e reconstituído durante a noite para, novamente, ser devorado no dia seguinte. Permaneceria assim por toda a eternidade, por desafiar Zeus: roubara o fogo de Hefesto para dar vida à Humanidade, sua criação, esculpida em barro.
Prometeu foi, com a morte de Quiron, absolvido de sua pena. Viu-se livre do castigo, impingido por Zeus, herdando a vida do Centauro Imortal, abençoado com a morte, por sua bondade, após adoecer para salvar um amigo.
E por isso somos nós, os Humanos: biliares e quentes.
- Por isso nosso fígado é o único órgão passível de regeneração - por força do castigo impingido por Zeus a Prometeu.
- Por isso a alma humana é imortal - Graças à benevolência imortal de Quiron! Ao receber de Zeus a imortalidade, concedida por Quiron, Prometeu vê seu espírito elevado em sabedoria. Salvam-se, assim, os seres humanos, da vida irracional terrena e de sua porção estritamente animal. Assim Quiron concede, a criador e suas criaturas, a vida através da eternidade. Assim nasce a alma: gerada pela benevolência de Quiron, pela divindade de Zeus e pela sapiência eterna herdada por Prometeu. Daí advém nossa trindade real.
Por isso, e para isso temos alma: para sermos sábios e bons e para transmitirmos beleza aos nossos descendentes.
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Desconfio de Deus! Sempre... Falhamos um com o outro, com frequência, no nosso exercício perpétuo ao espelho, pois somos, um do outro, imagem e semelhança. Mas acredito na imortalidade da alma humana, que vive na memória dos descendentes e sobrevive à morte dos ancestrais. E acredito porque a filosofia me salva de mim mesma. Sempre. E me cura.
*
Em calor e fogo fecha-se o ciclo da dor.
Por isso o ser humano é quente. Por ter sido esculpido no barro e cozido no fogo. Por ter recebido a vida eterna acesa por uma fagulha. E calor não combina com pulmão encatarrado.
Por isso, cuspirei tudo!
Reativo, assim, a ancestral e eterna centelha de fogo que mantém meu sótão iluminado.
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