Algumas lembranças ficam registradas em nossa mente como marca d'água. Tênues e indefinidas... Sem muitos contornos. Quase sem cor.
Dados importantes perdem-se no decorrer dos anos, transformando a memória em nada mais nada menos do que o registro de uma vaga lembrança.
Outras imagens flutuam em nossa memória, oscilando entre a certeza absoluta e a dúvida cruel. Como se fossem o resultado de um sonho que não sabemos bem ao certo se realmente sonhamos ou não. Vão e voltam. Vem e vão. As vezes desaparecem e nem nos damos conta disso. De repente voltam como se o fato tivesse acabado de acontecer... Dribles mentais que estão condicionados pelo exercício do "esquecer para lembrar"!
Mas existem fatos que nos perseguem pela vida a fora como uma foto "três por quatro" de carteira de identidade.
Definidas, claras, indiscutíveis memórias fixadas em nossas lembranças com a clareza de uma fotografia.
Assim são para mim algumas imagens da minha infância.
Imagens que fotografei, sentada em privilegiado ponto da minha casa: O patamar que separa o primeiro do segundo lance da escada que até hoje dá acesso ao pavimento superior da casa dos meus pais.
Dali, quando criança, muitas vezes escondida atrás da parede, muitas vezes distraída com meus cadernos, muitas vezes visível a quem adentrasse pela porta, aprendi cada coisa! Vislumbrei cada situação... Presenciei cada história!
Uma dessas histórias tem um traço de humor que prefiro omitir, para não esvaziar a beleza que ela encerra.
Quero falar da amizade entre meu pai e o Sr. Abraão.
Meu pai era do tipo que acordava cedo, dormia pouco, falava muito, tomava religiosamente seu cafezinho preto após o almoço que, segundo ele, era um santo remédio contra a dor de cabeça, sentava-se à sua mesa, situada no pavimento inferior de nossa casa, na sala cuja porta dá direto para a rua. Lia os jornais. Três por dia: O Estadão, A Folha de São Paulo e o Diário do Grande ABC. Era assim que começava seu dia: abrindo a porta, sentando-se à mesa e lendo os jornais. Depois lia um livro, depois redigia um documento, depois conversava com alguém que o abordava... que batia à porta que, por sinal, estava sempre, sempre aberta. Assim passava o dia...
E eu, criança de convivência difícil, quase sem amigos, curiosa e faladeira, muitas vezes sentada no patamar da escada, participava passivamente desse movimento.
Meu pai adorava apostar na loteria. De tanto jogar, ganhou duas vezes, sozinho, na loteria federal.
Em função desse gosto pelas loterias, muitos dos seus conhecidos eram vendedores de bilhetes, "cambistas" que apareciam invariavelmente às quartas e sábados, dias de extração, quando se aproximavam as seis horas da tarde e os bilhetes estavam encalhados.
Cansei de ver meu pai arrematar tudo, comprar fiado, trocar finais premiados por novos bilhetes para a próxima extração, encomendar números com os quais havia sonhado! Ganhava algumas vezes... perdia outras!
Mas havia um bilheteiro que vinha em casa muitas vezes apenas pelo prazer da conversa...
Era o "Seu" Abraão.
"Seu Abraão" pra mim, porque para meu pai, era apenas Abrão!
Ele vinha com sua bolsa de couro preta a tiracolo, fechada com um zíper e com uma aba sobreposta, fechada com um botão. Entrava, sentava-se. Tirava a bolsa que, na minha imaginação, devia ser muito pesada. Puxava a cadeira e subia nela com muita dificuldade. Colocava a bolsa por sobre a mesa e começava o papo, que eu acompanhava com toda a atenção.
Falavam de política, do bicho que havia dado na corrida anterior, da danada da borboleta 13 que ele estava seguindo e não dava de jeito nenhum. Não raro era meu pai pedir que eu fosse até minha mãe e pedisse a ela para passar um café.
Eu ia, muito a contragosto. Pedia e voltava correndo para não perder o fio da meada da conversa que eles dois estavam entabulando lá em baixo.
Meu pai e "Seu" Abraão eram muito amigos.
Eu não entendia muito aquela amizade, porque entre os amigos de meu pai não havia ninguém como "Seu" Abraão!
Ele era um homem que carregava aquela bolsa nos ombros, cruzada sobre o peito, durante todo o dia, cheia de bilhetes de loteria. Certamente havia alguma outra coisa a mais dentro dela, porque ela pesava tanto que ele, para suportar o peso, ficava inclusive inclinado para frente e para o lado, entortando as costas!
Sentava-se para conversar com meu pai e ficava o tempo todo balançando as pernas. Parecia uma criança que se senta em uma cadeira muito alta e o pé não alcança o chão.
Mas ele era adulto, com certa idade, voz grave, cabeleira vasta e negra. Era meio gordinho. Tinha as mãos pequenas, os pés também. Vestia-se de forma engraçada... Usava uma espécie de boina com uma aba na frente e um tapa orelhas que ficava abotoado no alto da cabeça. Usava suspensórios!
Acho que ele vinha em casa apenas para conversar com meu pai e descansar as costas, exaustas que deviam estar por causa da bolsa pesada. Não sabia o que ele carregava lá dentro, além dos bilhetes. Mas sabia que ela o deixava tortinho, tortinho...
Um dia meu pai ganhou na Loteria Federal! Bilhete inteiro. Extração de Natal... Uma bolada. Bilhete vendido pelo "Seu" Abraão.
"Seu" Abraão dava sorte para o meu pai, mas não tinha sorte igual: não colheu os louros de sua venda porque eram tantos os cambistas que negociavam com meu pai que cada um saiu espalhando a autoria da venda do bilhete premiado! O único que não fez isso foi "Seu" Abraão. Ninguém acreditaria nele!
Por mais que meu pai desmentisse os outros bilheteiros e afirmasse que havia sido "Seu" Abraão o autor da venda, ninguém acreditava, porque todo mundo considerava "Seu" Abraão um "pé frio". Achavam que meu pai creditava a ele o mérito pelo bilhete premiado por pena! Apenas para ajudá-lo.
Mas meu pai, amigo que era, deu a ele a devida gratificação: uma porcentagem do valor do prêmio, que eu não sei dizer de quanto foi... Só sei que a amizade entre os dois só aumentava.
Um dia vejo Sr. Gustavo, agente funerário, chegando em casa, tocando a campainha e chamando meu pai às pressas.
Começou uma movimentação estranha na sala do meu pai: Ele retirou a mesa, as cadeiras, liberou espaço. Começaram a trazer coroas de flores, suportes para velas, uma mesa esquisita: comprida, mais estreita e mais alta do que as demais. Começaram a chegar pessoas estranhas, minha mãe fazendo café pra todo mundo... ninguém ia embora!
E o meu pai arrasado!
Aí, de repente, a notícia: O "Seu" Abraão havia morrido. Foi encontrado em casa, morto, sem família, sem ninguém que olhasse por ele.
Coube ao meu pai liberar corpo e providenciar o enterro.
Naquela época não havia o serviço de velório municipal, razão pela qual "Seu" Abraão foi preparado para o velório em um dos quartos da minha casa. Eu, como sempre muito curiosa, dei um jeito de olhar pela fresta da porta.
A visão foi reveladora: descobri porque "Seu" Abraão era tão sozinho, porque era considerado "pé frio", porque ninguém comprava os bilhetes dele!
Entendi também porque ele permanecia balançando as pernas quando sentava-se para conversar com meu pai, porque carregava aquela bolsa que o deixava torto, porque usava suspensórios, porque tinha as mãos e os pés tão pequenos, porque escondia a cabeça com a boina.
Pela fresta da porta vi pela primeira vez o "Seu" Abraão tão de perto. Eu só o via da janela do andar de cima de casa ou do patamar da escada, quando ele já estava sentado.
No dia de sua morte descobri, quando tiraram suas roupas, que ele era do meu tamanho e eu tinha apenas 6 anos de idade!
A sua bolsa não era culpada por seu corpo estar sempre torto! "Seu" Abraão tinha uma corcunda extremamente acentuada, por isso seu corpo era tão inclinado para frente. Também por isso usava suspensórios: sua corcunda estendia-se até o meio das costas, impedindo que suas calças ficassem firmes no lugar!
Ele era solitário, estranho, considerado "pé frio" tudo isso porque era Anão e Corcunda!
Anos depois vim a saber que ele era também judeu. Carregava na bolsa a "Torá", livro sagrado Judaico, cujo exemplar meu pai herdou. Sob sua boina escondia-se um "Kipá", pequena circunferência de feltro utilizada pelos judeus como símbolo de temor a Deus.
Para meu pai a perda foi irreparável: "Seu" Abraão era um grande amigo!
Ele era como uma figura de conto de fadas: Era um amigo anão, corcunda, judeu e que trazia muita sorte!
Foi velado na sala da minha casa, e meu pai, no cortejo do seu enterro, segurou a alça da frente do seu minúsculo caixão.
Aquela foi a primeira vez que vi meu pai chorar.
Que lindo...linda narração!
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