Viaduto do Chá - São Paulo |
- Ei, espere!
Bastaria para resgatá-lo, para trazê-lo novamente aos braços do mundo e a todas as coisas que dão sentido ao fato de estar vivo!
Mas, naquela fração de segundo toda a sua vida havia passado diante dos seus olhos e nada, nenhum fato trazia sentido à sua existência.
- Pedro, não pule!
Poderia ter sido o bastante para faze-lo pensar na tolice que seria pular e, nesse segundo mágico e definitivo, suas pernas bambeariam, seus olhos turvariam, seu coração dispararia e suas mão tremulas e frias produziriam grande quantidade de suor.
Ele se lembraria da Rita!
Ela lhe havia pedido que não esquecesse o leite dos meninos e por isso não poderia pular agora.
- Quem haveria de levar o leite?
- Cuidado!
E Pedro, como num susto olharia para trás e desceria da mureta num sobressalto. Já na calçada depararia com um jogador de búzios e esse lhe contaria os perigos d'O Viaduto:
- Sabe, moço, semana passada um rapaz pulou lá em baixo só porque perdeu o emprego!
Acho que era fraco da cabeça, o Senhor não acha?
E Pedro se limitaria a abanar a cabeça, olharia apressado o relógio de pulso e constataria que apenas dez minutos o separavam do horário em que bateria o cartão de ponto!
Responderia laconicamente:
- É, acho que sim!
Teria se despedido e partido...
- Moço, o que o senhor vai fazer?
Pedro, com tal interpelação retornaria do seu delírio, olharia para o ambulante e, envergonhado, esconderia a verdade:
- Nada, estava só olhando!
-Psiu, desce daí, maluco!
Pedro, desligado do mundo, mal conseguiria ouvir os gritos da criança que faz ponto n'O Viaduto.
O menino, meio inocente, meio desconfiado, o puxaria pelo fundo da velha calça de gabardine azul e o repreenderia com a sabedoria comum às crianças:
- Não fica aí olhando pra baixo porque dá tontura, moço. Vai cair, hein!
Pedro, ainda atônito, ouviria a voz aguda da criança e lembraria dos meninos: Recordaria todas as vezes em que precisara acudir menor ou outras tantas em que explicara ao mais velho sobre os perigos da altura.
Refletiria sobre a sorte dos meninos: "Deus olha por eles!"
Pedro, funcionário público, passava pel'O Viaduto diariamente, no mesmo horário. Sempre pontual!
Até então todos os dias haviam sido iguais.
Até hoje, nenhum repente de loucura ou heroísmo havia sido suficiente para transformá-lo em uma celebridade.
Mas este era um dia diferente!
Nenhuma tolice corriqueira havia ocupado seu pensamento: Nem o leite das crianças (A Rita preferiu comprar leite em pó no dia da despesa); nem o horário do serviço (lá na repartição haviam substituído o relógio pelo livro de ponto); nem mesmo o jogador de búzios estivera naquele dia trabalhando n'O Viaduto.
Então Pedro, desolado, pensou: "que pena, hoje eu queria saber meu futuro..."
De repente, como num relâmpago, Pedro teve confirmada a certeza de que seu momento de ousadia e heroísmo não seria interrompido por ninguém!
Um segundo...
Uma fração de segundo!
Um mero instante.
Eis o futuro chegando de açoite.
- Tem documentos?
- Não.
- Mais um indigente...
- Não, senhores, só mais um momento, fotos ainda não!
- Vamos isolar o corpo, por favor, afastem, afastem!
Chega o Resgate.
- Cuidado, não mexe. Vamos imobilizar a cervical!
- Sem pulso. Traumatismo craniano.
- Hora do óbito?
- 13:30
- Você viu, mano, o cara rachou a cabeça!
Sangue. Fotos. Jornal.
Gente n'O Viaduto, muita gente!
- Eu já o vi n'O Viaduto antes...
- É, coitado, tão jovem!
- Jovem e “pinél”. Eu hein? Vai que eu pulo e dá errado... Não morro... Fico aleijado... Deus me livre!
- Pô mano, o cara abriu a cabeça, você não viu o sangue?
Todos olham, todos falam.
- Será que ele era viado?
- Que nada, cara, tem toda a pinta de drogado. Pra pular assim ele devia estar muito chapado!
E, em baixo do saco preto, o corpo de Pedro foi, aos poucos, saindo de órbita e se despedindo do mundo:
- "...ei moleque, avisa pra Rita que não tive tempo de comprar o leite. Não fala nada pro meu chefe. Ninguém vai dar pela minha falta: tiraram o relógio de ponto...
- Ah, os meninos..."
E assim foi: O futuro chegou há um segundo atrás.
Ninguém n'O Viaduto o conhecia. Ninguém sabia seu nome. Ninguém percebeu que a altura era muita. Ninguém o viu debruçado na mureta.
Naquele segundo, O Viaduto, caoticamente ocupado por transeuntes, parecia estar vazio!
Por azar, naquele dia, o anjo da guarda de Pedro havia tirado um minutinho para descanso...
- Ó LÁ, MEU, O CARA PULOU!
"DING-DONG"
- Oi!
- Oi, Rita, o Pedro está aí?
- Não, ainda não chegou!
- Quando ele chegar, fala pra ele passar no 5.º DP, lá em Santa Cecília. Prenderam um trombadinha na Praça Roosevelt com a carteira dele. Mas só os documentos. Nada da grana.
- Ah, então é por isso que ele ainda não chegou. Ele nunca se atrasa! - Entra, senta e espera um pouquinho, vou passar um café.
O Pedro já chega já!
Viaduto do Chá - 12/08/1993 - 13h30min - Cronica de um suicídio presenciado
Tânia Viana
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