Dedicado aos cantores:
Dênia Campos
Kátia Rocha
Márcia Degani
Sira Milani
Vera Platt
Nelson Campacci
Jan Szot
Quando eu era pequena, meus pais me contavam histórias de um Deus que criou os Céus e a Terra e povoou o mundo com criaturas concebidas para crescer e multiplicar, para florescer e frutificar e colocou, no controle de tudo, um ser superior, forte e dotado de inteligência, concebido à sua imagem e semelhança.
O Deus das histórias dos meus pais era Uno, o Senhor da sabedoria, da justiça, dos povos e dos atos todos, que, sob seus olhos não escapavam de prêmio nem de punição, se preciso fosse premiar ou punir.
Depois fui para a escola, tive aulas de religião. Fui ao catecismo e aí começou a confusão:
Primeiro dividiram meu Deus em três, depois confinaram meu Deus em uma rodelinha fina de pão sem fermento e sem sal.
— Quantas vezes engoli aquele Deus sem sal!
Depois, pegaram meu Deus, senhor de todas as coisas pessoas e atos, pregaram na Cruz...
Daí pra frente, tive que me conformar com a possibilidade de sua morte.
Diante dessa possibilidade, que não foi amainada nem com a história da ressurreição e da vida eterna, precisei eu mesma construir um Deus pra mim.
E o meu Deus era sim onipotente, onipresente e onisciente.
Sua onipotência se fazia perceber através do poder soberano e absoluto que cada um de nós possui de decidir o que é bom pra própria vida, o melhor caminho a seguir, o que serve e o que não serve. Isso combinava muito com a imagem do livre arbítrio, que também me foi ensinada nas aulas de catecismo; ministradas pelas mesmas freiras que partiram o Deus dos meus pais em três e o aprisionaram nas finas rodelas de pão seco. Então, não havendo conflito, acreditei na onipotência do meu Deus.
Era onipresente, considerando-se que é um poder soberano, cada um de nós o tem dentro de si, é óbvio que estando dentro de todos, estaria também em todos os lugares. Sendo um poder, que cada um tem em si (portanto, onipotente) e estando em todos os lugares, pois está dentro de cada um, fui aos poucos reconstruindo o Deus de meus pais, presente e poderoso.
Faltava-me saber se meu Deus tudo sabe e tudo vê.
Faltava-me conhecer a onisciência do meu Deus!
Eu precisava, nesta altura da minha vida, muito mais da sua onisciência do que de sua onipresença e onipotência.
De nada me adiantaria ter um Deus que está em todos os lugares, que pode tudo, mas que não sabe nada.
Foi então que concluí que Deus existia de fato, como me disseram meus pais, na minha mais crédula, tenra e saudosa infância.
Claro que ele tudo sabe, se está em todos os lugares, tudo vê, nada lhe precisa ser contado. Ele conhece cada pedaço de nós e sabe o que nos vai à alma, pois reside dentro de cada um.
A partir de então apostei todas as minhas fichas nesse Deus, que não foi dividido em três, mas, na verdade, era três num só! Assim resolvi também a história da imagem e semelhança.
Meu Deus tinha Cabeça, Tronco e Membros, tal qual a criatura humana criada para reinar sobre a terra e sobre todas as outras criaturas.
Na cabeça do meu Deus estava a sabedoria, a capacidade de aprender, a inteligência.
Havia descoberto o Espírito Santo! Foi Ele o primeiro a me tocar...
No corpo do meu Deus, encontrava-se o coração, que disparava de medo, de prazer, de alegria, descompassava de tristeza, se assustava diante do desconhecido, esperava pelo afago, pela concórdia, mas que também explodia de ira, inflado pela bile hepática da raiva ou silenciava assustado pelo ar gélido da tristeza, bombeado pelos pulmões cansados de aspirar a frieza da convivência humana. Este mesmo coração que se nutria da energia renal, também se intoxicava pelos rins cansados e empedrados, já incapazes de filtrar tanta podridão! Este tronco do meu Deus era, na realidade, muito parecido comigo mesma. Era Ele a minha imagem e semelhança. Encontrei-me, assim, com o Filho e achei que "ele era o cara!".
Neste meu encontro com esse Deus, veio-me a dúvida. Mas então quem é o PAI? O Soberano? O Senhor?
Aqui na minha casa, quando pequena, meu pai era aquele que tinha "pulso firme", que se preciso fosse, colocaria o "pé" na estrada. Meu pai era totalmente membros e nós habitávamos suas extremidades, e seguíamos carregados por suas mãos. Ele era a palavra e a vontade que valiam como ponto final. Ele era as “mãos-à-obra”. Por analogia, concluí que o DEUS PAI, residia nos membros, e não em outro lugar qualquer. E como meu pai fizera conosco, meu Deus carregava em suas mãos a humanidade inteira. Meu “Deus-Pai, Todo Poderoso” apresentava-se na mobilidade e na capacidade de ir e vir, de mover-se, de gerar, de manipular, tecer, manusear, deslocar, revolver, articular, moldar a terra e, posteriormente, gerar a vida com seu sopro.
Meu Deus-Pai era um artesão!
Quando me deparei com ele, avistei pés calejados que percorriam o mundo e mãos que moldavam barro.
Meu Deus-Pai era um artesão!
Quando me deparei com ele, avistei pés calejados que percorriam o mundo e mãos que moldavam barro.
Feito meu Deus, a imagem e semelhança de todos nós, percebi que havia invertido totalmente a história que conheci desde minha inocente e crédula infância.
Na minha trindade, Deus Pai ficava com a parte mais carnal e menos nobre, o Espírito Santo ficava onde sempre esteve, sobrevoando com sua sabedoria as cabeças entorpecidas dos ignorantes e, por vezes fazendo-as mergulhar no aprendizado, levado-lhes a luz do conhecimento, e o Filho de Deus era, este sim, o grandioso Deus do amor.
Fiz um giro em minha vida sobre meu próprio eixo e aí então tudo veio por água abaixo.
Percebi que a onipresença do meu Deus, não garantia proteção absoluta em todas as ocasiões, porque esse Deus que criei pra mim, dependia muito mais da minha capacidade de decisão do que de qualquer outra coisa.
Percebi que a onisciência do meu Deus não estava garantida de forma nenhuma, porque este meu grandioso Deus, presente em mim e em todos os outros, só sabia, de fato, a porção de cada um e precisaria da proximidade de todos e a cooperação mútua para conhecer a história na íntegra pra poder agir.
Percebi que a onipotência desse meu Deus supremo, que habita em mim, que me acompanha sempre, que me conhece e me desvenda, só tem poder até ouvir o primeiro e definitivo "NÃO! Isso é INEGOCIÁVEL".
Entendi que não posso esperar de Deus um milagre, porque sua onipotência depende da vontade de todos e nunca estive tão mergulhada na piscina do individualismo quanto agora. Nado diariamente no mar do Salve-se quem puder...
Percebi que não há como garantir a onipresença de meu Deus, porque no mundo em que vivo, está cada um por si, sem Deus por todos.
Percebi que a onisciência de Deus ficou dilacerada na medida em que sabedoria e conhecimento são coisas cada vez mais secretas e menos democráticas. Meu Deus só pode conhecer a parte que me cabe e a parte do meu irmão deve permanecer lá, confinada com ele, em sua própria angústia e autocomplacência. Protegidas secretamente. Vergonhosos segredos guardados a sete chaves.
Foi assim que aquele meu Deus, tão coerente com meu Deus da infância e tão semelhante aos Deuses da filosofia, que me atropelaram pela vida a fora, foi deixando de existir, foi desintegrando em sua ignorância, sua cegueira e sua fraqueza, todas tão humanas.
Foi assim que meu Deus admirável e soberano, sentou-se à mesa do banquete antropofágico e ajudou a dilacerar vidas, impotente e inerte diante de um outro Deus, menor em caráter, mas maior em articulações e poder. Foi assim que aquele de quem se esperava tudo sucumbiu às determinações de um deus rasteiro, conchavista e traiçoeiro.
Foi assim que meu Deus admirável e soberano, sentou-se à mesa do banquete antropofágico e ajudou a dilacerar vidas, impotente e inerte diante de um outro Deus, menor em caráter, mas maior em articulações e poder. Foi assim que aquele de quem se esperava tudo sucumbiu às determinações de um deus rasteiro, conchavista e traiçoeiro.
Foi assim que minha fé ruiu.
Foi assim que minha esperança despedaçou.
Foi assim que minhas vitórias se voltaram contra mim com a força de Homéricas derrotas, resultantes de trabalhos também Homéricos, muito pouco frutíferos e nada honrosos.
Foi assim que vi outros Deuses ascenderem ao panteão dos poderosos, subjugando aqueles de quem se deveria esperar força e coerência.
Foi assim que uma nova casta de divindades surgiu, recompondo uma metafísica perversa onde quem pode mais realmente chora menos e salve-se quem puder. Perfil totalmente coerente com esse novo Deus que surge das profundezas obscuras para me assombrar. Um Deus que se alia aos fracos de caráter, que conluia com desonestos e pune os enfraquecidos faladores de verdades...
Por força dessa mitologia contemporânea, curvo-me às evidências, cedo minhas armas, abandono minha batalha e concluo que meu Deus morreu.
Aquele "ser superior", que foi criado para governar as criaturas, matou o Deus que lhe deu vida. Mata todos os dias a possibilidade de ressurreição.
Eu fico aqui, prostrada diante de tanto desmando, esperando o dia em que meus pais voltem a me contar histórias de lealdade, dignidade e reverência ao que é correto e bom.
Meu pai já morreu e minha mãe completou 70 anos há poucos dias.
Talvez eu ouça tais histórias da boca deles numa outra oportunidade, quando me for concedido nascer novamente.
Espero nascer de novo, num tempo em que o homem, displicente zelador do mundo, decida zelar pelo que recebeu do Pai, em vez de simplesmente levar vantagem com a herança recebida de bandeja.
Amém.
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