segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Eu, Baiana.


Carnaval aqui em casa é um período do ano sagrado!
Mas, a magia que arrebatou meu marido desde sua adolescência, confesso, tinha um encantamento que me escapava...
Tinha um lirismo que eu não alcançava, nem em dimensão nem em profundidade.
Sempre houve em mim um secreto desconhecimento envergonhado... Me era impossível compreender a grandeza dessa paixão que começava a fervilhar com a chegada da primavera e que o arrebatava gradativamente até explodir na sexta-feira de Carnaval.
Nesse período a casa fica preenchida pelo som dos sambas enredo, acompanhados pelos batuques no tamborim, pelo ronco da cuíca, pela marcação precisa do surdo de primeira... Douglas cria uma bateria imaginária unindo seu batuque ao som que vem das caixas acústicas.
Nesses momentos de ritmista, ele recupera suas memórias afetivas. Alimenta-se das lembranças de um carnaval que hoje quase se perde no folclore do samba e nos (des)caminhos que o samba percorre.
Ouvindo gravações antológicas, de diversos carnavais memoráveis, ele novamente se perfila em uma bateria, formada por ritmistas imaginários que animam com seu batuque um renovado coração de carnaval.

Essa magia era, até poucos meses, somente dele, e eu o acompanhava apenas como espectadora.
Agora vou junto, e me vejo encantada também!
Vivo um encantamento tardio, nascido do meu encontro imprevisto com a Ala das Baianas da Escola de Samba Águia de Ouro, orgulho da Pompéia, bairro da Zona Oeste de São Paulo.

A distância cronológica deste encantamento hoje se desfaz e nos encontramos na mesma paixão. Uma paixão que somente agora consigo compreender...

Ao entrar na Águia de Ouro me surpreendi, tamanha grandeza daquele espaço!
Depois de alguns ensaios, me enchi de coragem e abordei a  Diretora da Ala das Baianas, Adriana.
Desci do camarote, onde assistia o ensaio, e pedi a ela que me deixasse integrar a ala. Afinal, meus domingos estavam sacramentados: Eu ficaria sozinha em casa, todos os domingos, durante os seis meses restantes até o carnaval (Douglas - sendo um dos compositores do samba enredo de 2016 - frequentaria a escola semanalmente) ou iria junto, participando dos ensaios...
E ingressar na Ala das Baianas foi, tem sido e será, sempre, uma experiência transformadora para mim!
Entre aquelas mulheres enfrentei um rito de passagem... e saio fortalecida! Não me sinto mais uma novata! Estou incluída, fui acolhida e aceita. Tenho agora um grupo pra chamar de meu. Tenho a minha Ala! Me tornei "Baiana".

Ritos de passagem, geralmente, são enfrentados com a faca entre os dentes. Saímos feridos. Às vezes agonizantes. Alguns de nós inclusive saem mortos, mesmo sem perceber....
Mas na escola de samba o rito é outro. Simplesmente acontece, de forma contínua e suave, como uma sedução que te molda, te transforma e você nem se dá conta. NÃO DÓI, mas tem começo meio e fim. Te livra da pele velha e te dá asas....
Lá, entre elas, sem que elas saibam, aprendi a por em prática fundamentos de convivência que nenhum líder, de nenhuma das instituição pelas quais passei, até há poucos meses, havia conseguido me ensinar.
Entre as Baianas, aprendi a me subordinar sem questionar. E me subordinei a uma hierarquia exercida sem uso de poder. Apenas com afeto, reconhecimento e acolhimento. Subordinei-me a mulheres que não me conhecem.  Apenas convivem comigo por poucas horas, dividindo, lado a lado, o giro da saia.
Entre minhas parceiras de Ala encontram-se mães como a minha mãe! Muitas já avós... Eu, filha de uma longa descendência de serviçais domésticas, a despeito da minha formação, me posiciono ao lado de merendeiras, enfermeiras, donas-de-casa, diaristas, cozinheiras, apreendendo delas toda a aura de conhecimento inerente à vivência que carregam consigo. Elas nem sabem disso, mas de tudo aprendo um pouco. Do giro, do gesto, das falas, dos olhares e dos silêncios. São mulheres negras, brancas e japonesas. De cabelos de todas as cores e texturas. O credo de cada uma sequer é assunto nas rodas onde se dividem o bolo, o guaraná e os salgadinhos trazidos de casa para partilhar com as companheiras. Da Van que faz o transporte até a quadra, muitas vezes descem corpos cansados do dia que passou. Chegam em busca do descanso somente desfrutado sob peso da saia amarrada à cintura. São todas mulheres dignas e mestras, cuja integridade me contaminou de subordinação até meus últimos fios de cabelo.
Elas não sabem, mas me puseram na linha! Me orientaram de forma cartesiana. Com elas aprendi a ser, ao mesmo tempo, vértice e vetor!
Me alinhei a elas lateralmente, de forma horizontal, parada e em movimento. Seguindo em frente ou estacionada. Girando sobre o próprio eixo ou em deslocamento. Giramos olhando discretamente onde estão nossas parceiras, porque o espaço de cada uma precisa - e deve - ser respeitado, protegido, conservado, defendido.   
Mas, por conta desse ingresso na Ala das Baianas, aprendi mais! Além de aprender sobre mim, aprendi sobre os outros, sobre o mundo, sobre utopia real e aplicável, sobre a morte do ideal, inatingível, e o nascimento do real, prazeroso e produtivo. Sobre como é difícil viver num mundo de conformismo sabendo que é possível existir um mundo de satisfação, PARA TODOS!
A Águia de Ouro, pelas mãos de seu Presidente, que com pulso firme  imprime  à escola um perfil familiar, funciona como uma grande comunidade acolhedora.
Ele é um líder que não busca NENHUM favorecimento pessoal. Conduz seus comandados norteado-os apenas pelo respeito. Conduta que há muito eu não via ser aplicada com tanta maestria. Sem lisonjas, sem falsas promessas, sem acenos de realizações improváveis. Lida apenas com o possível. E esse possível é  imenso e é para todos! Leva todos consigo, lado a lado, dividindo os méritos e distribuindo os louros, em igual proporção, acolhendo a todos com reconhecimento, mesmo que esta conduta se esconda sob uma capa de frieza e distanciamento.
Sidinei, o Presidente, se coloca dentro da estrutura de forma camuflada. Está sempre fugindo dos holofotes. Mas ninguém ali tem dúvidas de sua autoridade.  

No meu primeiro dia de ensaio na Ala das Baianas cheguei mais cedo, coloquei minha bolsa sobre a mesa e fui aprender a coreografia da ala com Adriana. Cerca de uma hora depois começava o jantar, uma hora antes do ensaio da escola. Da cozinha saíram os caldeirões. Do barracão vieram os mecânicos, escultores, soldadores. Do ateliê vieram os aderecistas. Sentaram-se todos à mesa e, de forma fraterna, jantaram. Poucos minutos depois começava o movimento para o ensaio da escola. Chegaram as passistas, as porta-bandeiras, os mestres-salas, os ritmistas, os diretores de harmonia. Formaram-se as alas, perfilou-se a bateria, que já ensaiava em naipes do lado de fora da quadra. Começaram os primeiros acordes. Como por mágica a mesa do jantar se desfez e deu lugar aos componentes da escola, que se ORGANIzaram de forma ORGÂNIca, como deveria ser toda e qualquer ORGANização! Quando eu percebi, já girava em torno da quadra, buscando uma sintonia com a Ala que acabara de me acolher.
Ao final do ensaio encontrei minha bolsa, exatamente onde eu havia deixado, numa clara demonstração de que lá, na Águia de Ouro, a convivência respeitosa e igualitária prescinde de olhares vigilantes. Como deveria acontecer em todos os lugares!
E assim foi em todos os ensaios seguintes. E esta situação, aos poucos, tornou-se corriqueira para mim, dentro da rotina de ensaios. Assim como se formava a mesa para o jantar, assim como acontecia a confraternização em torno da mesa, assim como surgia magicamente a divisão da quadra, espontânea e tácita, da mesma forma desapareceria a mesa de jantar, dando espaço aos sons que surgiam, gradativamente, assim como se iniciava o giro em torno da quadra. É com essa naturalidade que tudo acontece por lá, durante meses, alimentando a quadra de vida e criação!

Além disso, ainda tem o Guilherme!  Ele chega aos ensaios conosco e desce do carro, indo rapidamente ao encontro dos recém formados amigos de infância, com os quais brinca, corre e vai aprendendo a se relacionar, num núcleo social de acolhimento. Só dá as caras quando aperta a fome, ou a sede... e vem com os amiguinhos no seu encalço....
Uma delícia esquecer dele naquela multidão e saber que ele, mesmo longe dos nossos olhos, está próximo, acolhido e preservado. Assim como os movimentos orgânicos da quadra, vai também organizando suas visões de mundo, de parceria, de convivência.


Por conta da minha presença na Ala, fui parar no Ateliê de adereços e fantasias.Um dia me vi montando cabeças de fantasia, entre desconhecidos. Artistas vindos do Norte do país, trazendo sua expertise. Uma mão de obra que o "mercado de artes cênicas profissional" sudestino dificilmente absorveria. Seja porque não possuem uma certificação formal, seja porque compõem um grupo que sofre exclusão, movida  pelo preconceito de gênero, de cor, social de todas as matizes.

Mas o carnaval os acolhe. A Águia de Ouro os emprega e lá, nessa comunidade, convivemos sem que as diferenças nos isolem ou nos separem.



Fomos parceiros de cola de sapateiro, de ferro de solda, de saias de fantasia. E foi uma delícia. E eu aprendi, novamente, a me subordinar de forma feliz, sem me importar em que posição cada um de nós se encontrava. Apenas vi que o esforço conjunto é, de fato, para o bem comum. E o bem comum vem, mesmo antes do dia do desfile. Vem com a sensação de pertencimento!
Somente isso, para mim, já destruiria o discurso, tolo e egoísta, daqueles que se voltam contra a existência de verbas públicas alimentando a indústria do Carnaval.
Tolice!
O Carnaval não é uma indústria. Pelo menos na Águia de Ouro não! E nisso, me parece, a Águia voa no contrafluxo de suas "coirmãs".
Lá o Carnaval é uma Escola!
Nessa escola o reconhecimento é certo. Essa certeza entra com a escola na avenida e carrega o samba da concentração à dispersão, num pulso que não é somente metronômico. É passional. É arrebatado. É encantado.
Quando a Águia entra na avenida, todos são donos da escola!

Nessa escola, como Baiana, descobri o que é carregar um símbolo sobre o meu próprio corpo e assumi o papel que vem acoplado a esse símbolo! Aceitei desempenhar esse papel, com todo o prazer do mundo, pois sei que aprendo muito quando visto aquela roupa. Sei mais: sei que esse aprendizado fica, não somente em mim. Nesse aprendizado eu sou agente, sou veículo, mas sou também a aprendiz.
Apenas usando a vestimenta de Baiana me vi sendo merecedora do mais absoluto respeito dentro da Escola. Respeito e reverência jamais experimentados por mim em toda minha vida, nem mesmo depois de lutas empreendidas em família, no trabalho ou na sociedade.
A convivência dentro de uma Escola de Samba que preza suas raízes nos ensina a reverenciar os símbolos, sejam eles a saia de Baiana, o pavilhão da escola ou o apito do mestre de bateria. Na escola de samba aprendemos, de forma tácita, a cultivar as memórias ancestrais e a nos curvar diante da sabedoria, de forma afetuosa e generosa.
Conheci a autoridade sem o desnecessário exercício de poder, sem uso da força, sem intimidações ou da ameaças.
Na Águia de Ouro aprendi que os símbolos carregam consigo todos os valores que formam a identidade de um grupo étnico, cultural ou social. Aprendi isso na prática, sem discursos vazios ou demagógicos, apenas observando o exemplo dos mais antigos!
Esse aprendizado aliviou o peso da minha descrença na sociedade e em sua organização atual, incapaz de transmitir tais valores aos jovens aprendizes de vida.
Na Águia de Ouro aprendi que a utopia da convivência igualitária e inclusiva não pode ser apenas um discurso. Ela precisa existir para nos conduzir ao convívio social menos cruel. Aprendi que a utopia não deve servir apenas para nos fazer caminhar. Ela pode se tornar real, sólida, consolidada. Pode nos alimentar, nos proteger. Nos premiar com prazer e satisfação.
Essa é a magia que seduziu meu marido em sua adolescência e que me escapava.
Essa magia agora cura meu azedume e me faz absolver meus desafetos. Clareia minha visão e me alivia! Me alegra. Me diverte. Me distrai. Me ensina, me inclui, me faz útil e reconhecida. Me absolve também, de meus próprios julgamentos e das penas, todas imaginárias que, porventura, me sejam imputadas.
Aprendi tudo isso integrando a Ala das Baianas da Escola de Samba Águia de Ouro.
Com elas comungo o giro da minha saia e me sinto feliz.

Entro com minhas parceiras na Avenida na próxima 6ª feira e tenho certeza que saio vitoriosa!
Agora, bêbada desse encantamento, sei que, finalmente, me encontrei com o Carnaval.
A Águia de Ouro é uma escola onde todos deveriam ir, pelo menos uma vez, pra conhecer, em parte, essa atmosfera que tento descrever. Fracasso na minha descrição, porque, de fato, é tudo muito maior! Lá somos mestres e aprendizes, todos, sem diferenciação.
O Carnaval é efêmero. Acaba já, já...
Mas a magia fica.
O ensinamento permanece e já, já, começa tudo outra vez.....
Por isso decidi: de hoje em diante voltarei à Águia de Ouro anualmente, para renovar meu aprendizado e para desfrutar com elas, a minhas Baianas, desse bálsamo que é o Carnaval.
Agradeço a todos pelo acolhimento, pelos ensinamentos e pelo caminho, que caminhamos juntos.
Nos vemos na avenida, e lá também nos despedimos, até o próximo reinado de Momo, mas levarei vocês comigo, pra sempre!
Muito obrigada.