quinta-feira, 14 de julho de 2022


Neste interminável mês de julho, desse ano macabro de 2022, nós, mulheres, e sociedade sensível que, acredito, ainda existe, nos vimos diante de quadros de barbárie.

Questões envolvendo a infância roubada, por uma maternidade precoce, fruto de um ato sexual irrefletido, entre duas crianças (prefiro chamar assim… mesmo que, aos olhos da lei, a classificação técnica seja estupro) Vimos uma criança, desrespeitada pelas instituições, que deveriam protege-la e ampará-la, aos olhos da lei que oferece respaldo a essa proteção.

Questões envolvendo invasão de privacidade, onde vimos o submundo da imprensa sensacionalista que se alimenta dos mexericos da vida privada de celebridades, expondo detalhes de decisões íntimas de terceiros, respaldadas pela lei, como se fossem atos passíveis de julgamento moral e condenação.

Talvez já fosse suficiente, mas tivemos um gran finale desse espetáculo horrendo de violações: o episódio do monstro-anestesista, que findou com uma prisão, em flagrante, por um ato criminoso que não precisa, novamente, ser relatado aqui.

Semanas de horror, mulherada. Semanas de horror!

Mas, quando é que foi diferente?

Quando?

Sempre foi assim! E não somente no Brasil, nem somente agora. Esse não é um mal da modernidade.

Mas parece que o horror era menor, não parece?

Sim, porque a dor não nasce com o fato. Nasce com a ciência dele. Quanto mais temos conhecimento do horror, mais ele dói!

Fato: Estamos doloridas como nunca! Mas, agora, em voz alta, porque nunca, antes dos avanços tecnológicos dos meios de comunicação de massa, tivemos tantas informações sobre o horror que não enxergávamos cotidianamente, em todos os âmbitos.

Viver, nesse mundo de horrores, tendo ciência deles, é muito difícil!

Aviso aos homens: ser mulher não é fácil. Acredito que não seja fácil ser homem também. Viver é difícil. Mas nós, mulheres, via de regra, conduzimos nossas possibilidades de vida pelo viés da escuta e conciliação. Os homens, também via de regra, conduzem pelo viés da urgência e da força.

Natural que essa diferença crie uma prevalência masculina sobre as mulheres. Isso, por si só, já gera uma supremacia, que precisamos superar, porque não somos irracionais! Essa polaridade macho/fêmea não cai bem entre seres pensantes, penso eu...

As mulheres têm lutado com as armas que possuem: com palavras de ordem,

redes de apoio, grupos de estudos, núcleos de sustentação social, terapia, qualificação, pesquisa, meditação, autocuidado, autoajuda, auto-observação, reposição hormonal, musculação, análise, denúncias, reação, mudanças de paradigmas, indignação, fortalecimento.

Nossa, como cansa!

Não sei como andam as coisas pelo mundo mas eu sigo exausta: de observar, de pensar, de esperar, de questionar, de insistir, de perder. Perco diariamente batalhas que, inclusive, desconheço. E quando as conheço a derrota se torna ainda maior.

Lutamos contra inúmeros inimigos sociais, históricos, biológicos, econômicos, financeiros.

Seria bom se não precisássemos lutar também contra os homens, e torná-los como nossos inimigos. Seria bom se os tivéssemos ao nosso lado, nessa batalha contra a desigualdade.

Muitas vezes, o necessário para a mudança de comportamento, visões de mundo e paradigmas masculinos, na sociedade atual, se resume a três pequenos gestos:

- permitam-se escutar

- não reajam àquilo que foi escutado

- reflitam acerca do que escutaram.

Nós, mulheres, aprendemos ancestralmente a escutar. Ancestralmente tivemos a voz roubada, silenciada e, na modernidade atual, vemos nossas vozes, que começam a ecoar, serem desqualificadas.

Eu pergunto: para onde está direcionada a inteligência dos bons homens (não estou falando dos “homens de bem”) que não ouvem esse silenciamento?

Talvez esteja direcionada para o temor da perda iminente de sua supremacia, caso as mulheres, além de tomarem gosto pela fala, comecem a se ouvir, serem ouvidas e, acima de tudo, se fazer escutar.

Sinto muito rapazes, nossas vozes estão dentro de seus ouvidos, desde antes do nascimento. Nada as silenciará de fato. E mesmo que não haja no planeta mais nenhuma mulher falante, mesmo assim seguiremos sendo ouvidas, pela saudade que a ausência da nossa fala promoverá, pelas memórias passivas que insistirem em vir à tona, pelos vazios que se formarão à partir desse silêncio. Essa é a bruxaria pela qual tantas de nós foram queimadas na Idade Média e tantas de nós, desde a infância, seguem sendo violadas das mais diversas formas. Tudo em nome de um silêncio produzido à força.

Essa “força” que nos silencia tem-nos transformado em seres armados. Não queremos mais esse silêncio. Estamos prontas a reagir, diante de qualquer circunstância.

É obrigação moral e histórica dos homens contemporâneos, mais inteligentes e humanos, promover nosso desarmamento pacífico. É assim que precisamos de vocês nessa luta. Criem condições para que não precisemos nos armar.

Este é um pacto urgente e necessário!

E nós, mulheres, considero urgente que não embarquemos nas armadilhas que a Guerra espalha pelos campos minados pelos quais caminhamos.

Estas últimas semanas tem sido duras. E essa dureza tem feito de nós seres guiados pela indignação. Uma indignação que, muitas vezes, pode nos fazer pecar pelo excesso.

Pelo excesso de dor, de pressa, de dúvidas, de medos e, por que não, de raiva! Sim, muita raiva! Negar isso é negar o tamanho do problema. Ela existe, mas não pode ser nosso guia.

Um desses excessos me causou incômodo e me moveu a escrever este texto - que ainda não sei se me servirá apenas como exercício íntimo de reflexão ou se será publicado de alguma forma.

Vimos por todos os meios de comunicação, a voz de prisão dada ao monstro-anestesista esta semana. Preso por uma mulher que cumpriu sua função, aos meus olhos, de forma exemplar.

Essa voz de prisão suscitou uma série de videos-reels, ironizando, satirizando e criticando a polidez da delegada em oposição à truculência exercida em outras situações, onde abordagens policiais inaceitáveis foram apresentadas como contraponto.

Tudo para justificar a tese: médico, branco é tratado com educação. Pobre negro é tratado como violência

Uma tese sofista, baseada em paradigmas inadequados, aos meus olhos… E posso estar errada. Mas deixem para deduzir isso após compreenderem minha argumentação. Uma argumentação que poderemos transferir para vários outros âmbitos, nos quais tomamos partido movidos por paradigmas equivocados.

Vamos lá:

Sim, o médico branco recebeu voz de prisão numa abordagem polida e educada.

Sim, os pobres não brancos (negros, indígenas, dependentes químicos, moradores em situação de rua, etc…) são abordados deforma inaceitável, truculenta e violenta.

E a verdade se encerra aí. Passamos a alimentar um sofisma quando duas verdades absolutas como essas são colocadas em campos opostos, para que uma desqualifique a outra, desconsiderando-se o contexto.

A delegada fez o correto. Como autoridade, sua abordagem DEVE ser solene, respeitosa, educada, polida, coerente com o cargo que ela ocupa. Deve inspirar respeito e distanciamento hierárquico e, sobretudo, segurança. Estamos em tempos em que a civilização tem por obrigação garantir que a justiça se cumpra à luz da lei. E a lei prescinde de grosserias, abuso de autoridade, violência. A lei, por si só, deve bastar. E cabe à nós esperar essa polidez das garantias legais, sem nenhum tipo de desqualificação que compare situações circunscritas em contextos diferentes. A justiça deve andar de mãos dadas com a polidez, que sequer é uma virtude. Todos deveríamos ser polidos, sem que isso fosse considerado uma qualidade. Não há nenhum mérito em praticar a polidez. É um dever institucional da vida em sociedade. Até os canalhas deveriam ser polidos. Quanto mais as autoridades!

Portanto, por analogia, ser polida, como foi a delegada, ao prender o monstro-anestesista, não pode ser um demérito nem deve receber críticas, tendo como polo de comparação e oposição o tratamento inaceitável dado aos não brancos, em geral. Porque não somente os negros, mas todos NÃO BRANCOS são vítimas de condutas reprováveis de autoridades, que devem sim, essas sim, ser condenadas.

É desleal conosco, como sociedade, utilizar uma conduta correta como objeto de um humor destrutivo, num âmbito de comparação com uma postura inaceitável.

Aquilo que é inaceitável não pode, numa sociedade racional e equilibrada, servir para desqualificar o que está correto.

Depois de ironizar a postura correta, desqualificando-a, utilizando-a como contraponto para revelar aquilo que está errado, como conseguiremos, depois, exigir o correto: polidez, gentileza, educação de uma figura de autoridade, se nós mesmos desqualificamos esse gesto quando ele aconteceu?

As abordagens feitas a não brancos, via de regra pobres, periféricos, desfavorecidos socialmente, são absolutamente inaceitáveis, por serem condenáveis socialmente, por denotarem falta de condições para um convívio coletivo e por não terem amparo na lei. Uma autoridade que abusa de seu poder está contra a lei. PONTO! Não podemos nos distanciar dessa visão e transformar isso num objeto de deboche, ironia e escárnio. Isso não nos vinga, não nos redime e não nos fortalece. Somente adia o momento de juntarmos forças para agir de forma coesa contra essa realidade vergonhosa que ainda nos ronda. Gestos inaceitáveis, não necessitam de nenhum tipo de comparação que os desqualifique. São INACEITÁVEIS por si só, por serem desrespeitosos, desumanos, arbitrários, vis. Por utilizarem de artifícios condenáveis, como abuso de poder, ameaça, violência institucional.

Ao comparar abordagens realizadas em contextos diferentes, como se estivessem em condições equiparáveis, desqualificamos o que está correto, e não corrigimos o que está errado. Criamos uma falsa sensação de justiça, produzida por injustiça de julgamento.

Essa é uma armadilha que tem nos prendido frequentemente, porque o efeito manada condena aqueles que ousam apresentar um ponto de vista diferente, por medo do apedrejamento das redes. As redes nos transformaram em seres surdos e incapazes de construir uma argumentação racional. é tudo tão rápido que um absurdo toma ares de verdade viral em segundos. à partir disso, nenhuma palavra mais terá eco.

As redes tem-nos trazido proximidade, conexão e um senso de globalidade. Mas tem-nos trazido também um maldito fenômeno da notoriedade instantânea, onde um a piada qualquer ganha eco e força de verdade, se propaga e gera consequências irrefletidas. Nada mais colegial!

Além disso, a notoriedade instantânea, inflada pelo desejo justo de justiça que predomina na sociedade sã, gera um sem número de imbecis vomitando julgamentos sustentados por premissas falsas e produzindo conteúdos, nem sempre bons, nem sempre importantes, nem sempre verdadeiros, que lhes garantirá engajamento que pagará suas contas no final do mês, através de parcerias pagas, divulgação, marketing indireto. É isso que move os conteúdos que viralizam. Não se iludam! Influencers não são os donos da verdade. Aliás, muitas vezes, estão bem distantes dela!

Cuidado com os notórios imbecis. Não serão eles os responsáveis pelas mudanças que a sociedade necessita, porque são fruto das distorções que essa mesma sociedade adoentada promove!

Eu, hoje, resolvi sair do meu silêncio auto-imposto para vir aqui pedir...

Vim pedir aos homens que escutem mais e não reajam à escuta de forma habitual. Esperem! Reflitam sobre o que escutaram e permitam-se assimilar olhares diferentes. Tudo isso antes de recrutar qualquer uso de força, contra quem quer que seja. Facilitará muito nosso processo de pacificação!

Peço também que deem fim ao corporativismo do clube do bolinha, onde o silêncio acerca das infrações de outros homens acabam por blindar horrores como os que presenciamos essa semana, promovido por esse monstro-anestesista. Esse corporativismo não tem graça!

Não à toa tantos homens temem ter filhas mulheres! Porque bem sabem os mistérios que rondam o universo masculino e sabem também do que os homens são capazes, tanto por ação quanto por omissão. Peço que não se omitam!

Vim pedir às mulheres que, dentro do processo de fortalecimento necessário e urgente, não coloquemos os homens como nossos inimigos só por serem homens…

Sim, é sempre um homem, mas, não... Não é todo homem!

Sim, existem homens e HOMENS.

Escolhamos os HOMENS como aliados contra esses minúsculos que insistem em desqualificar a desinência masculina.

Sim, a delegada foi exemplar ao prender o monstro-anestesista de forma polida, educada, serena, clara e digna. Para mim a polidez dela diante daquele monstro expôs ainda mais o submundo moral desse monstro-anestesista pelo contraponto que gerou. Esse foi o estranhamento: como, uma mulher, num posto de autoridade, diante de um monstro como aquele, conseguiu permanecer serena, educada, polida, se, no mundo, por muito menos, a violência transborda contra os mais fracos?

Respondo: porque a força dela está no exercício da gentileza. Isso é o que devemos exigir de todas as autoridades: GENTILEZA, mesmo diante do horror.

Comparar a delegada aos arbítrios de policiais violentos é injusto e nos enfraquece como mulheres diante de um gesto absolutamente feminino, que deveria ser enaltecido: ser forte e corajosa, mantendo-se serena, mesmo diante do horror.

Eu aceitaria de bom grado um vídeo que enaltecesse a educação dela, mesmo diante do horror. Porque e o que eu espero de TODAS as autoridades, tanto diante de desmandos quanto diante de vulneráveis, desfavorecidos, minorias e mais fracos.

É o mínimo!

Esperar dela um gesto de arbítrio, como os exercidos quando a polícia abusa de sua autoridade, em abordagens contra os mais fracos é assumir que, como mulheres, fomos incorrigivelmente derrotadas pelo espírito belicista masculino.

Será o fim fracassado de uma guerra sem vencedores, que jamais deveria ter acontecido.

Não sei vocês, mas eu, sigo lutando, à minha moda: exausta, carregando meu cansaço, que se faz físico, diante de cada imagem de violência que entra pelos meus olhos, e que sinto como se tivesse sido contra mim.

Sigo de lanterna acesa, em busca de gentileza, de escuta, de companheirismo. Desejando saneamento ético e o fim da violência, pessoal, moral, institucional e social.

Sempre.

Quem estiver disponível para cultivar essas condutas, terá espaço comigo. Quem não estiver, peço, POR GENTILEZA, que mantenha distância. Não tenho mais tempo para grosserias.

Sou mulher e estou cansada. Não sou capaz de mensurar a reação que meu cansaço é capaz de produzir.



Obrigada.