terça-feira, 1 de outubro de 2019

Nova Safra

Queria muito ver os MANDA-CHUVAS da CPTM, e suas respectivas mães, viajando em trens como este, com bancos cuja largura sequer comporta dois passageiros sentados lado a lado, dignamente, e cujo comprimento do assento corresponde ao tamanho de um assento de cadeira de maternal. Sem falar do encosto, em angulo reto, inviabilizando qualquer posição confortável para a coluna!
"TRENS ESPANHÓIS DE NOVA SAFRA" é o meu CU!!!
São trens considerados "sucata" na Europa e trazidos pra cá a peso de ouro. E são trens planejados para percursos curtos e rápidos, onde, na maioria das vezes, o passageiro não tem necessidade de se sentar e onde SUPERLOTAÇÃO é termo desconhecido .
Mas quem é que disse que GADO precisa viajar com conforto e dignidade?

24 anos de PSDB em São Paulo!

Nós merecemos muito ser tratados como GADO

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Nudez



A vida cresceu e a casa ficou pequena.
O tempo, em nós, esculpe marcas que nos revigoram, mas, enquanto isso, nossa casa envelhece.

Chegamos nela atraídos pelo jardim. Amplo, gramado, com jabuticabeira. O jardim nos convidou a ficar e ficamos.
Aqui festejamos, aqui semeamos e colhemos, aqui partilhamos festas e afetos. Aqui adoecemos e encontramos cura.
Aqui a família cresceu de forma agregadora, com cada um somando mais um. Perdemos a conta, já! Foram algumas dezenas nos últimos 3 anos.
Nesta casa, quando chega alguém, é sempre alguém que nunca vem só.
As chegadas são em revoada: "Flapflapflap"... Chegam batendo asas. Fazem pouso. Fazem ninho. Fixam estada por aqui.
E a casa, agora pequena, precisa de mais tetos pra abrigar a passarinhada.

Nossa casa nos recebeu como uma avó recebe seus netos: acolhedora. Nos ofereceu abrigo, teto, segurança, ir e devir. Mas, é idosa e definha, dia a dia.
De suas parede externas desprendem-se os azulejos, que iniciavam já seu descolamento, desde antes de nossa chegada.
Ao fundo, a edícula recusa hóspedes pois tem seu telhado habitado pelos cupins.
Na cozinha, a pia vai perdendo suas vestes: o gabinete, ano a ano, foi carcomido pela podridão úmida, emergente do esgoto mal acabado, há décadas esquecido por trás das portas mal fechadas.
Luzes... Há muitas. Muitas delas nunca piscaram para nós. Desativadas, foram nunca por nós utilizadas.
Fizemos um gato. Iluminamos o quintal e nele festejamos o São João. Foram 3 anos consecutivos de alegria borbulhante, no quintal desta casa-festa que nos acolheu como uma avó acolhe seus netos: amorosa, porém, idosa, enfraquecida e definhando.

A vida cresceu e o telhado já não comporta mais a chuva, que respinga entre os vãos provocados pelo tempo e os furos crescentes nas calhas. A água não pede passagem. Ela simplesmente vem. Respinga. Tanto bate até que fura. Uma cachoeira resolveu furar a porta do escritório, que, desde nossa chegada, já vinha ensaiando um orifício...

Mas nossa casa resiste. Vem resistindo, há décadas, ano a ano, honrando a imponente memória de sua imagem na juventude: soberana, altiplana, observando a rua como quem olha o vale do alto de uma colina.

Por tudo isso, Ela é linda!

Começa a se despedir de nossas vidas... Despe-se dos quadros, das luzes, das cortinas e tapetes. Mantém portas abertas para o carregamento de saída.
Não nos perguntou nada. Nada nos cobrou.
Apenas permanece imóvel enquanto a desnudamos.
Esvaziaremos suas paredes. 
Levaremos os quadros, os vasos, as cortinas.
Enrolaremos os tapetes, empacotaremos as almofadas.
Descartaremos montanhas de inutilidades.
Desfilaremos pelo caos, entre caixas e, desse caos, surgirão as prioridades. 
Durante sete dias transportaremos memórias, visões, atos, fracassos e conquistas.
Durante sete dias migraremos de cá pra lá, levando o que nos basta, deixando o que não nos cabe, descartando o que já não há.
Serão 7 dias de despedida silenciosa. Sei que ela nada dirá!

E nossa casa, de nós, perderá tudo! Se despirá de cor, perderá seu cheiro, ficará sem luz.
Levaremos tudo. Menos ela.
Ela ficará nua, vazia e só, como estava quando por aqui aportamos.

Ela nos deu teto, amparo, segurança e diversão. Ela nos deu tudo. Não nos pediu nada. Nem mesmo que ficássemos!
Os gatos e os cães, levaremos. Se houvesse flores, levaríamos. Ela consentiria.
Nossa casa cuidou de nós. Comportou tudo. Acolheu todos. Nos ensinou a abrir portões e acender fogueiras.
Está quase nua. E ficará só.
Nós, nos vamos.
Decididos, fecharemos os portões.

Não diremos nada. Ela saberá...
Mudamos.

domingo, 18 de agosto de 2019

Vazio




Considero difícil descrever o vazio. Por uma razão simples: na vida sempre buscamos o preenchimento. E o vazio é uma ilusão sensorial, dúbia e paradoxal.
Por exclusiva falta de parâmetros comparativos entre o vazio e os demais medos,  fica o vazio ali, largadinho, no canto, esperando que alguém olhe pra ele com olhos amistosos.
- O vazio assusta!
Todo mundo quer algo, pra usar em algum momento, pra mostrar pra algum amigo, pra preencher algum vão da vida, pra carregar de lado ao outro. 
Tudo, tudo pra camuflar o vazio.
- Ah, o vazio é o nada!
Descobri que o vazio é uma imensidão plena onde tudo cabe. Como poderia concordar que isso é nada?
O vazio é tudo o que está presente e invisível, o vazio é a expectativa sem necessidade de satisfação, é o caminho que se percorre sem obrigação de chegada.
O vazio é leve mas muitos temem seu peso.
O vazio atrai olhares mesmo sem ser visto.
Conheci o vazio e o trouxe pra minha morada.
Leve, fluido, sem forma, sem odor.
No meu vazio cabe o mundo inteiro.
Descobri que a felicidade é o sentimento que borbulha quando o vazio se completa.

Ser feliz é abraçar seu vazio. Ser seu continente e seu próprio conteúdo, é flutuar como balão de gás Hélio, é não buscar nada porque o todo está pleno.
Meu vazio mora comigo, me alegra, me distrai, me faz companhia.
Não está mais à espreita. Não me acua mais, está aí para ser preenchido ou apenas para me transmitir paz.
Decidi preenchê-lo sorrindo, fazendo festa, com brilho nos olhos, com o peito procurando pelo futuro.
Eu o preenchi comigo mesma e descobri que isso é ser feliz.
O vazio é meu. Preencho como eu quiser.

sábado, 17 de agosto de 2019

Faísca



Às vezes eu perco o sono. É raro, mas acontece. Hoje é um desses dias. Morfeu não quis me abraçar…
A casa, silenciosa e apagada. O único cômodo aceso é meu cérebro, por onde as caraminholas passeiam desavisadas e indecentes...
Penso bobagens, crio planos, construo estratagemas.
Elaboro estratégias que certamente não seguirei. Mas, crio, mesmo assim! Elas me servirão de repertório imaginário para o momento exato da ação. Momento que nem sei se virá, mas, para o qual estarei pronta!
Assim funciona minha cabeça. Incansável e insana. Exausta. Precisando extravasar o desejo de revirar o mundo.
Que mundo besta!
Neste mundo besta, levo a vida fazendo coleta. Coleto imagens, coleto sons, coleto informações, coleto curiosidades, coleto desapegos e desafetos. Coleto carinhos e afagos. Coleto esperanças e filas de espera. Coleto naufrágios e portos seguros. Coleto frutas amargas, flores secas, chão sem vida. Coleto fruteira colorida, vaso desabrochando e terra adubada. Coleto mudança, novos ares, horizontes distantes e disponíveis. Horizontes verticais, horizontes montanhosos, horizontes beira-mar.
E nessas coletas todas vem gente também…
Gentes de todos os tipos. Alguns de coração latejante. Outros empedrados. Olhos vivos, outros vidrados. Hálitos frescos, peles mornas, mãos firmes… alguns pés descalços. Várias almas empoeiradas: prateleiras esquecidas de memórias não usadas. São gentes de todos os tipos!
Coleto a friagem, que me encatarra o peito e embarga a voz. Nasce um pigarro, e vira tosse. Se mimetiza em escarro que põe pra fora o palavrão que não gritei, o insulto que não revidei, a provocação recebida que ficou sem resposta.
Provocações: Não as respondo mais!
Porque a vida me provoca de várias formas e tenho escolhido as mais leves.
Tenho escolhido a leveza da risada dos Patetas, o latido estridente da cadela de cauda longa, a preguiça prolongada da gata de olhos grandes, o cheiro do café com cigarro que acorda a casa.
Tenho escolhido aumentar a família com filhos que pego por empréstimo por algumas horas…
Tenho escolhido caminhar em busca. Tenho escolhido querer mais.
Mais gentes e mais coletas!
Coletas que me tirem o sono com planos mirabolantes. Coletas que me instiguem por caminhos pelos quais nunca passei. Coletas que me apresentem seres iluminados e generosos, que me peguem pela mão e me digam:“Vem, você consegue!”
Quero coletar histórias, coletar memórias e descartar rancores. Quero descartar o ranço dos que foram carcomidos pelo fracasso.
Quero oferecer adubo a quem quiser florescer. Quero deixar exemplo pra quem quiser crescer.
Cansaço imenso de olhar pela janela da desesperança e só ver derrota. Estamos derrotados. É fato!
Fomos vencidos pela discórdia e pelo retrocesso. Fomos vencidos pelo lamaçal que nos envergonha mundo afora. Fomos vencidos pela usura, que especula com nossos bolsos e nossas vidas, nos dá tostão de troco e ainda nos confisca o direito de escolha. Fomos vencidos. Fato.
Mas, não há derrota para aquele que mantém o cérebro aceso!
E meu cérebro é meu sótão, que permanece claro no meio desta escuridão. Ela não conseguirá me engolir!
Meu cérebro, agora, cataloga amigos novos, que chegam afins e caminham juntos.
Meu cérebro se ilumina com o gesto de acolhimento e impulso em direção ao novo.
Quero ir!
E eu vou! Tenho pressa.
Quero cerrar fileiras, quero ir à luta. Quero travar a batalha final. Derradeira. Depois dela serão somente louros. Não haverá grilhões. Não haverá impedimentos; não haverá obstáculos humanos, desumanos ou sobrenaturais que fechem caminhos ou bloqueiem passagens. Não haverá! Porque um único ponto de luz ilumina uma vida inteira.
Prometeu, com uma faísca, deu luz a toda a Humanidade. Levo comigo esta mesma faísca e, com ela, mantenho meu sótão iluminado.


sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Claustro


Dedicado à Equipe de Médicos Pneumologistas do Hospital e Maternidade Brasil
Dra. Cristina Mendonça, Dra. Verginia Masini, Dr. Marcio Neis
09 à 16/08/2019



Aqui estive nos últimos sete dias. Não sei ao certo porque vim parar aqui. Por quê, num hospital? Mas, aqui estive. Aqui permaneci, desejando sair, blasfemando contra a privação de liberdade.

Descobri, nestes sete dias, que a liberdade é o bem mais precioso que se pode ter.

Nem mesmo a necessidade de boa saúde supera a necessidade de liberdade. Não pra mim!
Para mim a liberdade é o combustível da saúde!

Fui acometida de um quadro alérgico agudo, de origem inespecífica. Um Bronco-espasmo. Começou com um pigarrinho insignificante que insistiu em ficar grudado na minha garganta e descer para meus brônquios. Desenvolvi um quadro crítico de tosse provocado pela diminuição da luz dos meus alvéolos (em português: os alvéolos se fecharam). Meus pulmões queriam expulsar a secreção para poder oxigenar o sangue e essa tentativa de expulsão se traduzia em tosse convulsiva, constante, ruidosa, dolorida e acompanhada de miados de uns 200 gatos que pareciam ter fixado residência no meu o peito.  Eu inspirava e, ao expirar começava a miadeira... Um chiado inicialmente ruidoso. Depois, vinha um silvo e, aí, a tosse: barulhenta, carregada e sem nenhuma expectoração. Vez por outra saía um catarrinho verde. Uma trisca de catarro duro e concentrado de cerca de 3 milímetros quadrados. Um nada, verde e duro, que saía a marretadas, depois de horas consecutivas de tosse extenuante. Foram exatamente 3 porções iguais de catarro, de minúscula dimensão, que aquela tosse de 11 dias consecutivos conseguiu expelir. Nem um milímetros quadrado a mais.

Eu me sentia uma verdadeira usina de muco verde, que, quando saísse, sairia fazendo alarde e provocando urros de comemoração

Eu tinha tantos planos praquele catarro! Pelo barulho que fazia no meu peito, imaginei que,  quando começasse a se desprender, seria um festival com fogos de artifício. Imaginava que sairia aos montes, em quantidade transbordante. Queria encher a pia, colecionar montinhos, fotografá-los e encaminhar as fotos pros amigos através do whatsapp. Queria contar minhas façanhas de escarradeira-mór após a minha alta. Queria contar vantagem, fazer drama, encenar a ação: 
"Aí eu inspirei, expirei, tossi, foi aquela barulheira. Corri pra pia. Cuspi. Ahahaha!!! Sai, catarro, deste corpo que não lhe pertence!"
Queria me sentir orgulhosa dos meus escarros. Que nada... Não teve foto enviada pelo zap. Não teve fogos de artifício. Não teve cena dramalhão... Meu catarro não quis sair pela minha boca. Fui um verdadeiro fracasso em matéria de expectoração!



Foi assim durante 11 dias consecutivos (2 dias que antecederam minha primeira ida ao PA, 5 de tratamento em casa e os demais no hospital).

Somente no quarto dia de internação é que minha tosse começou a cessar. Mas o chiado, o miadinho no peito e a catarreira permaneciam comigo.

Altas doses de corticóide injetável, 2 antibióticos, 6 inalações diárias com broncodilatador (e aquela taquicardia insana que seguia as inalações), protetor gástrico, fisioterapia respiratória, 3 horas diárias ligada a aparelhos que injetavam, sob pressão, oxigênio nos meus pulmões para abrir,  a forceps, os alvéolos retraídos e limpar os brônquios da secreção.

Monitoramento cardíaco e arterial a cada 4 horas por conta dos broncodilatadores...

Permaneci sozinha durante a maior parte dos 7 dias. Douglas esteve comigo durante algumas horas de cada um desses dias. Mas ele também foi atropelado...

Gui, num acidente, no treino de futebol, no momento em que foi liberada minha internação, precisou imobilizar a mão. Douglas me colocou no quarto e correu pra acudir o Gui. Mais hospital pra ele naquele dia... Foram dois hospitais diferentes, em duas cidades diferentes, num intervalo de 12 horas. No dia seguinte foi ele quem precisou correr para o dentista. Além de, em casa, termos o cachorro doente precisando da rotina de medicamentos e atendimento veterinário. Uma mudança de casa para organizar  e um show novo para ensaiar. Tudo nestes meus 7 dias de claustro.

Me pergunto como ele deu conta.
Me pergunto como eu dei conta...

Aqui no quarto, entre um medicamento e outro, uma sessão de fisio e outra, o fone de ouvidos na orelha pra aprender a ópera e os apetrechos de fono todos à mão pra tentar ressuscitar a voz, tão abalada com todo esse trauma brônquio-pulmonar. Desafio: cantar dois dias após a alta. Corrida de obstáculos com cronômetro acionado. Fui eu comigo mesma na disputa... 100% de chances de vitória. Uma barbada!

Presa e na escuta. Foi assim que me senti durante estes 7 dias.

Ouvido aguçado... Fui capaz de identificar tudo o que acontecia nos corredores. Sei a cadência dos geradores, identifico quais carrinhos trafegam pelo andar. Fiz amizade com várias pessoas estranhas que entraram na minha intimidade com apenas um leve "toc-toc" à porta do quarto.

Fui servida religiosamente, estabeleci rotina, descansei, pensei... Pensei... Pensei...

Aproveitei estes dias pra conversar comigo. Fiz uma checagem de expectativas e possibilidades.

Joguei muita coisa no lixo. Coisas materiais, nem tantas... Mas coisas emocionais. Memorias inúteis, sentimentos vencidos, escutas infelizes.

Meu pulmão me aprisionou para que eu pudesse me libertar.

Me libertar de culpas que não são minhas. Me libertar de revezes que não provoquei. Me livrar de pesos que não preciso carregar.

Meus ouvidos ouvem. E meus pulmões arquivam. Deduzi isso.

Nesses 7 dias descobri que gosto de estar sozinha, porque é a única forma de me encontrar com a saudade, sentimento que quase nunca me visita...

Gosto da minha companhia e percebi que ter oportunidades de permanecer sozinha me organiza internamente.

Gosto de estar só. Mas não gosto de estar tolhida, presa. E isso me fez mal.

Sairei daqui procurando reservar meus ouvidos apenas para minhas reflexões internas. Não quero mais o mundo externo, e adoecido, me invadindo. Sou sã e quero preservar isso. Não quero mais receber, pelos ouvidos, questões, dramas, dilemas que não me digam respeito e que caem sobre mim com o peso de uma bigorna.

Fiquei presa por 7 dias e ninguém precisou, indispensavelmente, de mim. A não ser eu mesma.

Esta consciência me libertou.

Sou livre, agora, pra cuidar de quem me ama e me valoriza, pra caminhar junto, com quem me quer como companhia, pra escolher estar com aqueles que não me cobram por responsabilidades que não são minhas e nem me elegem como tábua de salvação.

Sou livre pra viver minha arrogância, minha chatice, meu mal humor e minha rudeza com aqueles que são capazes de me ajudar a comer um saco de sal, até sua última pedrinha! Porque, depois do sal, virá o afeto. E esse será sempre verdadeiro. 

(Imagine-se comendo um saco de sal! Mas coma um saco grande. Daqueles de 50 quilos. Convide alguém pra dividir com você essa iguaria em banquete exclusivo. Ninguém aceitará o convite. Virão apenas os que te amam. Eles dividirão com você esse maléfico banquete. Dê valor a eles!)

Meus parceiros do saco de sal serão, doravante, os beneficiados com minha calma e doçura. Com minha paciência e compreensão, com minha parceria e cumplicidade. Porque são minha fonte de calor e esperança renovada.

Meu pulmão me salvou. Filtrou, arejou, renovou meu sangue.

Descartei muita coisa nestes 7 dias. Descartei memórias insalubres que deixarei trancafiadas neste quarto de hospital... Prezo minha liberdade e tudo o que aprendi com a privação dela nestes 7 dias.

Sou livre pra voltar pra casa, limpa, arejada, renovada e feliz da vida, porque o Dodô vem me buscar já, já. E lá vamos nós, começar tudo de novo. Outra vez!

Às memórias maléficas que deixei trancafiadas naquele claustro, obrigada pela companhia. Vocês cumpriram seu papel. Foram 7 dias de libertadora solidão.

Liberdade é um bem maior do que a saúde!

Não à toa a punição com a morte é menos cruel do que o isolamento.

Ser livre é bom. Mas requer coragem. E isso eu tenho, de sobra.

Foi bom. Passou.
Saio maior do que entrei.






quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Dia dos pais - 11/08/2019

Conheci o Douglas em 1991. Ele, aos 23 anos, já tinha certeza de que queria ser pai.

Não era apenas uma vontade. Era um desejo. Um sonho. Uma convicção.

Hoje, olho o homem de 50 e entendo a certeza do garoto de 23.

Porque olho o filho e reconheço o pai.

Porque olho o pai e também o enxergo um filho.

E porque, quando vejo o avô, identifico a descendência que se formou.

Vejo o pai que briga, que é chato (e como ele é chato!!!), que cobra, que marca junto, homem a homem, vislumbrando já o momento em que a vida vai obrigá-lo a afrouxar as correias...

Vejo o pai que já comemora o aumento da família, com a chegada efetiva da primeira namoradinha do filho.

Vejo o pai que ataca de técnico e preparador físico nas horas vagas (a contragosto do curumim...)



Vejo o pai que vai de voluntário na cantina da escola e é a sensação da molecada. Pra eles ele é o "Doglão", "Grande Douglas"! É até mesmo o "Tio Gatão", pras adolescentes mais bem humoradas... 😎


É o querido da comissão de formatura! Mas, também exagera, às vezes... E erra feio quando quer fazer o filho vestir roupas suas pra ir à baladinha ou pra fugir do frio...

Aí, não! Confesso: tenho que intervir...

Fora isso, é sempre o melhor anfitrião, churrasqueiro, animador da festinha e faz todos se sentirem em casa. Casa nossa que, aliás, tornou-se a central de operações da molecada. Em grande parte por conta do carinho com que o Douglas acolhe a todos.

E o Gui herdou essa sociabilidade dele! Ou aprendeu com ele, não sei ao certo.


Sei que não vi os banhos da infância, não sei quantas fraldas foram trocadas, nem quantas febres foram tratadas por ele. Mas sei que o Gui vai muito bem, obrigado, e isso se deve ao fato de ter um pai que joga junto, que vibra na arquibancada, que briga com o juiz, se for preciso. Mas, chegando em casa, faz a resenha: comenta tudo, dá pitacos, tira o sarro. Mas, também puxa a orelha, se precisar, dá sermão e põe o trem da vida novamente nos trilhos.

Enfim, é o pai que todo garoto mereceria ter!

Dodô, dia do pai, na nossa casa, é todo dia... Mas hoje, oficialmente, comemoremos. Parabéns!

Gui, você é um felizardo.

Beijo nos dois.


terça-feira, 13 de agosto de 2019

Porta morta


Na madrugada silenciosa ouço apenas o som dos geradores, vindo da janela que fica do lado esquerdo da minha cama.

Chamo de janela, mas, de fato, é uma porta-balcão, originalmente instalada para abrir para a sacada, pequena, retangular, voltada para a lateral do prédio, de onde posso avistar um pequeno vale complementado por uma suave elevação de relevo. Toda a geografia é adornada por prédios, interligados pelo asfalto, com ilhotas verdes, levemente arborizadas, iluminadas pela luz amarela de lâmpadas de iodo. Exatamente à frente da minha janela, no lado oposto do vale, no alto da colina, avisto o Complexo Hospitalar Mário Covas.

O céu, indeciso, ainda não sabe se é hora de clarear. Lentamente começa a mudar de cor. Vejo a cidade tentando despertar.

Vejo isso pela transparência da porta de vidro.
É uma porta. Mas foi trancada!

- De que serve uma porta trancada? 
- Aqui, na minha sacada, serviu para transformar-se em janela.
- Mas, originalmente, uma porta deveria servir para dar passagem. Uma possibilidade. Uma opção.
- Mas, está trancada!

Seria uma porta de duas folhas. Mas as folhas permanecem imóveis e inertes, fixas e resistentes, apesar do insistente giro que imprimo na maçaneta.
Não é mais uma porta. É uma janela. Apenas. Ficou inutilizada por força de um bloqueio deliberado: alguém decidiu que seria melhor trancá-la! E deixá-la ali, inerte e tolhida de sua função original. Normas de segurança justificam a decisão
Não é mais uma porta. Agora é, apenas, uma janela.

- Mas, não há beleza e poesia nas janelas?
- Claro que há: através das transparências as janelas sugerem possibilidades. Sugerem pontos de observação. Arejam, iluminam, ventilam.
- Sugerem?
- Sim, sugerem!
- E, de que vale a sugestão se a possibilidade de realizá-la está trancada pela porta, cuja maçaneta não gira e, as chaves, não se sabe onde estão?
- Elas arejam, oras.
- Não arejam, nada! Não o fazem sozinhas. É o ar que areja através delas.
- Olha bem: elas iluminam!
- Não iluminam, não! Não têm esse dom. Sem que a luz decida vir e passar por elas, reina a escuridão, como agora. Nenhuma luz adentra por esta janela!
- Ah, vá! Ventilam, ao menos...
- Quê? Ventilam nada! Paralisem a brisa e imobilizem o vento! De que servirá a tal janela?

Servirá para nos lembrar da passagem que teria sido, se fosse uma porta. Se estivesse destrancada, passível de ser aberta. Se a decisão deliberada de alguém não lhe tivesse amputado uma de suas funções: abrir-se para a sacada.

- Sem a brisa fresca, sem o mover do ar, sem o circular constante e alternado entre quente e frio, de que nos serve uma janela? 
- Serve, apenas, pra nos mostrar o que nos falta! 

Fecho imediatamente o vidro da janela. 
- Ar? De que me faz falta o ar? Não faz! Se não o tenho, não me falta.

Faltaria se o tivesse e não o pudesse usar. Se não o tenho, não é meu, não me falta. Fico sem! Sem ar não preciso nem de frestas, que dirá janelas. Fecho. Pronto. Agora é apenas vidro. Superfície fria de um quadro. Plano, transparente, translúcido, que, sem luz, torna-se invisível. Nem está mais lá. Pronto. Acabou!

Fecho a cortina e cubro a janela. É madrugada. A luz do dia ainda não pediu passagem. A escuridão da rua é tapete negro, salpicado por luzes artificiais. Tapete que camufla o chão, num mimetismo de céu de estrelas. Tapete imaginário, chão escondido, luz de gerador. Um céu com som de gerador. Com luz de gerador. Com cor amarela e quente, aquecida pelo motor do gerador, que aquece o ar, que amarela as sombras. Era o que se via desta porta trancada, antes que eu a cobrisse para que deixasse de ser janela.

Viam-se só mentiras: uma rua que nem é tapete. Um chão de camuflagem. Uma estrela de gera-dor. Triste!

Trancada ficou a porta. Depois, vi a porta virar vidro. Plana. Lisa e sem arejar. Não ilumina nada porque a luz ainda não chegou com o beijo do despertar.

Sem a luz ela era apenas um quadro que ganhou moldura. Permaneceu sem vida. Enquadrado, reduzido, limitado. 

Estática e inútil tornou-se a janela, assim como morreu a porta com sua fechadura trancada. Ela jamais se move, apesar do insistente giro na maçaneta.

Porta morta. Ex-janela. Atual moldura.

- Que bom que existem as cortinas. De que me serve uma janela que não areja, nem ilumina? Melhor não vê-la.
- Mas, ainda poderia ventilar!
-Já te disse, janela não ventila. Quem ventila é o vento... 

Ele é brincadeira de pega-pega entre ar quente e ar frio. Um vvvvai... Outro vvvem... E ao passarem um pelo outro, em fuga, que é encontro; esbarro, que é afago,
 deixam seus rastros, nos sopram a pele e deixam em nós aquela sensação de "úi, passou": "Vvvvvummm"... "vvvvvvumm"... "..."

- É ele, o vento.

Ele passaria pela janela se não houvesse a cortina. Se, antes de fechada a cortina, a janela não tivesse virado moldura. Se, antes de tudo, continuasse viva, como porta. Mas estava morta. Não era, nem nunca fora, janela. Não era quadro. Não era nada. Estaria, à partir de agora, coberta por uma cortina mortuária. Tornou-se uma porta morta.

- Portas trancadas morrem!

A porta virou janela, virou moldura, virou vidro inerte. É agora líquido, que escorrerá por milênios e que, jamais, não amolecerá. Escorrerá, deformará, ficará disforme. Quebrará, até. Quem sabe? Sei que nunca mais brincará de pega-pega com o vento.

Foi melhor cobrir a janela. Esquecer dela.
Janela, não, Porta Morta! Portas trancadas não servem nem mesmo pra virar janelas.

É melhor não tê-las.

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Psiu! O silêncio é parte da cura.




Dedicado à equipe de Saúde, Governança e Nutrição do Hospital e Maternidade Brasil,
 Setor 4A.
09 à 16/08/2019



Vrrrrrr, blrum, blrum"... "Vrrrrrr, blrum, "blrum"... "Vrrrrr, blrum, blrum"...

"Toc-toc". "Pclac". "Nhéeeeee"...

- Bom dia! Como passou a noite?
(minha vontade de dizer a verdade é interrompida por um acesso súbito de boa educação. Quase não dormi, entretida  pelo vai-e-vem incessante dos carrinhos das enfermeiras, pelos corredores, madrugada adentro)
- Passei bem, obrigada.
- Que bom! Bem, tenho aqui sua medicação: Solu-medrol, inalação com 5 ml de soro fisiológico, 35 gotas de Atrovent e 5 gotas de Berotec.
- Ok.
- Eu agora vou limpar o seu acesso e você tem também o Clavulonato pra tomar, assim q acabar a inalação.
- Ok. Obrigada!

Assim começou este meu terceiro dia no hospital.

Em dois dias consegui delinear como seria este meu período de cárcere hospitalar, tendo como referência o vai-e-vem dos carinhos das enfermeiras.

Daqui de dentro do quarto é possível vislumbrar as ações, antes mesmo que aconteçam, apenas analisando a onomatopeia dos corredores.

Os carrinhos denunciam tudo.

"Vrrrrr, blrum, blrum"... "Vrrrrr, blrum, blrum"...
"Vrrrrr, blrum, blrum"...
"Toc-toc". "Pclac". "Nhéeee"...

Assim ela adentra meu quarto com seu carrinho, após a suave batidinha à porta: "toc-toc"... Quase inaudível, mas prenunciada pelas rodinhas de seu veículo.

Ela entra com seu carrinho metálico.
Uma coluna de seis gavetas, identificadas por números - uma gaveta para cada quarto. Sobre o tampo, um laptop, um mouse e um aparelho medidor de sinais vitais. Na lateral, um gancho do qual pende um estetoscópio e uma base onde repousa, enrolado, um esfigmomanômetro (Mas pode chamar de aparelho de pressão, que dá na mesma).
Na outra lateral, uma caixa de papelão amarela, com uma abertura picotada no topo, destinada ao descarte de perfurocortantes e um cestinho de lixo comum.
Suportando tudo isso, dois pares de rodinhas maciças de acetato.

Cada carrinho comporta o material médico de seis quartos. Cada quarto, uma gaveta, identificada pelo número do respectivo aposento. No andar onde me encontro são dezoito quartos (todos chiquérrimos).

São, portanto, 3 carrinhos e suas respectivas condutoras: técnicas de enfermagem que os conduzem, freneticamente, de lá para cá, pelos 108 metros de corredores do andar. 42 metros na lateral onde se encontra meu quarto.

Diariamente, inúmeras vezes ao dia: "Vrrrrr, blrum, blrum"... "Vrrrrr, blrum, blrum"...

Essa onomatopeia revela a estrutura dos corredores, cujo piso é revestido de placas de granito, com 60 cm de lado, rejuntadas com cimento branco.

E lá vem o carrinho, deslizando suavemente pelo granito, "vrrrrrr".... Eis que a primeira rodinha perpassa o rejunte, "blrum", a segunda, "blrum" e aí o carrinho retoma seu deslizar sereno novamente. Até que novo rejunte se ofereça como obstáculo ao deslizar da rodinha maciça de acetato sobre o chão, ritmando a passagem das enfermeiras pelos corredores num "vrummmm, blrum, blurum" constante e cadenciado, acompanhado dos "plác, plác, plác" dos saltinhos dos sapatos. 

Sei quando estão chegando as fisioterapeutas pelo "xéinq, xéinq, xéinq" de suas passadas. Todas as fisioterapeutas usam tênis com solado de borracha e o som característico do atrito dos solados com o chão altera o timbre dos corredores em alguns momentos do dia.

Assim, os sons me animam, constantemente, até que adentra alguém pela porta do meu quarto, para romper meu próprio silêncio e movimentar esse claustro que ainda não consigo digerir, nem expelir, completamente.

Esse ritual se repete, religiosamente, durante todo o dia, há 3 dias, obedecendo a prescrição dos medicamentos, pontualmente ministrados pelas técnicas de enfermagem, que se alternam em turnos de seis horas.

Sempre sei quando a medicação vem. Até que ouço um deslizar diferente. Suave... Sem obstáculos.
"Vrrrrrrrrrrr".... "Zzzzzzzzuíp", "tcléexs-tcléexs".
"Toc-toc". "Pclac". "Nhéeeeeee"

- Bom dia!
- Bom dia!
- Trouxe seu café.

Para minha surpresa aquele deslizar suave, seguido por um som opaco e indecifrável, sucedido pelo metálico "tcléexs-tcléexs", vinha do carrinho-buffet, conduzido pela copeira que acabara de me entregar a bandeja com o café da manhã.

Fiquei curiosa. O que seria o "zzzzzzzuíp", som sibilante que precedera o metálico "tcléexs-tcléexs"?

A pretexto de sair ao corredor para realizar a caminhada prescrita pela fisioterapeuta, acompanhei a copeira até a porta do quarto.

E entendi tudo ao me deparar com o carrinho-buffet.

Não era exatamente um carrinho. Era um armário  térmico, alto e largo, capaz de acondicionar as refeições dos 18 quartos do andar. O armário acondiciona, ao menos, 36 bandejas, pois há refeições que se valem de duas bandejas, como o almoço e o jantar. As bandejas permanecem encaixadas em trilhos metálicos e o carrinho-armário fica termicamente fechado por uma capa, semelhante àquelas das quais são feitas as sacolas térmicas (daquelas utilizadas pelas famílias para acondicionar os lanchinhos do bate-e-volta à praia, nos dias quentes de verão). Uma estrutura plástica, cinza metálica, com a espessura de um edredom, provavelmente forrada com uma manta acrílica, reveste todo o carrinho. E, para minha surpresa, essa capa é fechada por um zíper. Também as rodinhas são diferentes. São grandes, de borracha e a estrutura é parada através de um freio de mão, acionado pela condutora, porta a porta, em seu trajeto por toda a extensão do corredor.
Isso explica o deslizar suave e longo "vrrrrrrr", seguido pelo som sibilante, e inédito, até então, da abertura do zíper, "zzzzzzzzuíp", que precede o som metálico das bandejas que deslizam sobre os trilhos, "tcléexs-tcléexs,", antes do suave "toc-toc" da quase inaudível batidinha à porta, que anunciou minha primeira refeição do dia.

Numa comparação grosseira eu diria que o carrinho das enfermeiras funciona como um automóvel, que reduz a velocidade, para rapidamente em uma esquina para realizar uma conversão, à direita ou à esquerda. No caso do meu quarto a enfermeira para, converte à esquerda e adentra com carrinho e tudo nos meus aposentos para ministrar minha medicação.

O carrinho-buffet não para. Ele estaciona.
Trafega pelos 108 metros de corredores tal qual um carro de entrega e estaciona, porta a porta. A copeira-entregadora aciona os freios, abre o armário térmico e de lá retira a refeição-Delivery que chega, quentinha, ao seu destino. Enquanto faz a entrega, a copeira deixa seu carrinho-buffet seguramente estacionado no corredor. Freios acionados, capa térmica devidamente fechada "zzzzzzzzziúp": Feita a entrega, lá vai o carrinho, deslizando suave e silenciosamente sobre suas robustas rodas de borracha.... "Vrrrrrrrrrrrr"...

Assim passo meu dia no quarto do hospital, analisando o tráfego barulhento dos carrinhos pelos corredores, nos quais se pede silêncio.

Duas vezes ao dia o som dos carrinhos muda. De dentro do quarto imagino como seria seu formato. Deve ser grande, pois o ruido é grave. 
Antes mesmo que ele chegue à minha porta, vou ao corredor como quem não quer nada. No quarto ao lado encontra-se um senhor sexagenário. Ele está em pé, de camisola de algodão em padrão hospitalar, meias e chinelos descartáveis. Ao lado, um carrinho branco, largo e de altura mediana. Diria que, se me posicionasse ao lado dele, sua parte superior alcançaria minha cintura. E a parte superior do carrinho possuía duas tampas quadradas. Uma vermelha, outra verde. Sabe-se lá o que haveria lá dentro. Mas o carrinho era um verdadeiro parque de diversões: penduricalhos, panos, frascos de Spray, um balde com escovão, um rodo, sacos pretos que apareciam, como um truque de ilusionismo, saindo de uma cartola de um mágico.
De repente a porta se abre e, de dentro do quarto ao lado, sai uma moça. Ela é baixinha (o carrinho fica até maior perto dela). Está vestida com um uniforme escuro. Calças, blusinha com abotoamento frontal, touquinha nos cabelos e botinhas nos pés. Era a condutora do carrinho!

- Pode entrar, senhor. Já acabei. Se precisar de algo, é  chamar.

Antes que ela me visse entrei no quarto correndo e pulei na cama, (onde se espera que fiquem os pacientes de um hospital).

Em menos de um minuto o "toc-toc" anunciava a chegada da dona do carrinho.

- Bom dia!
- Bom dia, querida!
- Posso tirar o lixo e lavar o quarto?
- Claro! Vou fazer a caminhada...

Me levanto e saio. À porta está o carrinho. Tive que me conter para não levantar as tampas e desvendar os mistérios escondidos em baixo daqueles quadrados verde e vermelho. Mas fui forte! Resisti à tentação. Fiz minha caminhada pensando nas maravilhas que eu faria se tivesse um carrinho daqueles na minha casa...

Esse vai-e-vem onomatopaico dos carrinhos, que perpassa todo o dia, mantém meus ouvidos ocupados e me livra do tédio deste cárcere-hospitalar ao qual estou submetida.

Poderia contar esta minha estada no hospital utilizando outros parâmetros, menos divertidos. Mas não quero.

Sei que muitos enfrentam dilemas, em busca por saúde, muito mais severos do que os meus. Percebo isso nas minhas caminhadas, prescritas pela fisioterapeuta, pelos corredores do hospital.

Sou a felizarda do andar. Posso me distrair com meus olhos de ouvir e meus ouvidos de ver. Não sei ao certo quem ouve e quem vê, mas é com eles que antevejo a ação que se desenrolará em meus aposentos, apenas analisando o frenético movimento dos carrinhos em seu vai-e-vem incessante, de porta em porta, até pararem diante do meu quarto.

Assim passo meu dia. Assim me livro do tédio e assim sigo em tratamento.

O silêncio é parte da cura!
Talvez, para alguns, mas não para mim. Eu me divirto ao constatar que esse "silêncio" não me alcança! 

Aqui, na minha caixola mental, engrenagens, quase tão barulhentas quanto os carrinhos dos corredores, giram incessantemente e fazem minha mente maquinar fugas, planos, ações, revoluções, revelações, discursos e projetos. 

Tenho certeza: estou renascendo e de asas prontas. Prestes a alçar novos vôos. 

Por isso esse retiro!

Por isso, aqui, no meu quarto, a cura se dá através dos ruídos subversivos que me invadem, que de mim saem e até mim chegam, trazidos pelos carrinhos, persistentes e determinados, ou movidos pelas minhas engrenagens internas, ruminantes e incansáveis, que mantém vivo, aceso e sonoro, este meu sótão iluminado.






sábado, 10 de agosto de 2019

Cura


Ontem me vi ligada a um monitor de sinais vitais, perfurada por um cateter de soro, invadida por drogas que não entrariam no meu organismo, de jeito nenhum, por minha livre e espontânea vontade.
Foram 12 horas desde a entrada no PA até a liberação da internação pelo plano de saúde.
(Um plano empresarial, de faixa elevada, com qualidade crescentemente reconhecida no mercado. Estou em hospital cujo quarto me remete a um SPA, no qual eu não entraria jamais, se dependesse dos meus recursos exclusivos. - Esta é uma das vantagens do cooperativismo: ter acesso a benefícios dos quais não se poderia desfrutar de forma solitária. É a mesma ideia da estrutura previdenciária vigente no país atualmente, instituída pela Constituição Cidadã de 1988 e alvo do desmonte criminoso por parte do atual governo federal e seus asseclas: será o fim da Previdência Solidária e da Seguridade Social. Valores impraticáveis em um governo fascista. Mas... Agora que Toth e Atena voltaram a me visitar, logo escreverei sobre isso. "Fechem-se parêntesis!")

Nas 12 horas em que fui paciente exemplar (porque, haja paciência!) fiz várias auto-análises.
Estou com um quadro de broncoespasmo. E sei exatamente em que momento meu pulmão adoeceu!

"Tristeza mata, Tantan", disse-me há pouco uma amiga.

Mata!
Mas somente se virar pedra. A minha virou catarro, que pretendo cuspir aos pedacinhos.
Deve ser lindo de ver aquela gosminha verde aderindo à cuba branca da pia de mármore branco, no banheiro branco do hospital asséptico.
É uma Vitória! Eu sou uma vencedora.
Cuspirei mesmo, aos pedacinhos, toda a gosma que entrou em mim, há alguns dias, invadindo, inadvertidamente, meus ouvidos. Cuspirei, sílaba por sílaba desse catarro infecto! Está decidido.

Sou um ser híbrido e controverso. Meio humana, meio égua, nesta minha versão contemporânea e feminina de Quiron, o centauro imortal. Dou colo e dou coice. Amo e odeio, em igual velocidade. Afago e afasto, sem menores avisos nem pedidos de permissão. Sou inteligência viva e pulsante, residente num sótão iluminado, mergulhada na animalidade escura do meu corpo carnal.
Não luto mais contra isso.
Não consigo curar meus próprios males, mesmo plena de habilidades para tal. Minha cura se dá quando colaboro com a cura dos outros.
Mas, às vezes, dói!
Dói quando a cura do outro carece de argumentos injustos pra se consolidar. Dói ouvir a dor do outro se lançando sobre sobre meus braços, como trapezista sobre uma rede de proteção. Dói ser o último aparato de preservação de uma vida. Dói não poder escolher não ser a rede. E dói, sobretudo, ter que silenciar acerca disso.
É de tirar o ar.

E por isso meu pulmão se fechou.
Minha língua feroz silenciou.
Meu coração inclemente relevou.
Meu impulso incontrolável foi refreado.

O que seria um diálogo tornou-se uma escuta passiva e, meu silêncio, resfriado e mudo (parafraseando Paulinho da Viola), grudou no meu peito feito visgo. 

Ouvi tudo. Ponto a ponto, ciente da injustiça involuntária, promovida pela patologia que provocava a fala. Por isso não revidei. Calei e adoeci. E pedi perdão. Justo eu, que não creio no perdão!
                *            
Entendo o perdão como um consentimento tácito para erros futuros. O Perdão é irmão gêmeo da Culpa. Ambos filhos da Vergonha e do Arrependimento. Eu acredito em compromisso. Odeio relações de culpa. Amizades não florescem em substratos adubados pela culpa, a mãe de todas as cobranças e parceira de todos os julgamentos.
Hoje sinto culpa por dor antiga de outrem, não causada por mim, mas cobrada de mim.

*
                             
Meu psicanalista me disse, certa vez, que profissionais como ele só são necessários porque os amigos falham. Amigos não são aqueles que falam. São aqueles que escutam.
E é preciso saber escutar e calar de forma saudável. E é preciso ter ouvidos vazios para conseguir calar de forma sadia. Porque tudo o que dói, e não é dito, vira sintoma.
Falhei como amiga. Não tive ouvidos vazios.
Em mim, tudo virou catarro.
Catarro que agora cuspirei, aos pedaços, homeopaticamente, na cuba branca, da pia de mármore branco, no banheiro branco do hospital asséptico. Silenciosa, solitária e curativamente.
Apenas eu e ele: este catarro que cuspirei e que, de nada, não me serve.
*
                           
Centauro Quiron - o Curador - Pascual Salaverri - Zaragoza 1921
Quiron, centauro imortal, adoece ao ter seu casco envenenado. Uma doença eterna, por força de sua imortalidade. Fora atingido pela flecha embebida no veneno da Hidra de Lerna, que ferira seu amigo. Salvou o amigo, mas foi condenado a carregar eternamente a dor pela cura praticada. Por sua bondade, pede a Zeus que o livre da imortalidade, já que o sofrimento, insuportável, seria eterno. Quiron roga que sua imortalidade sirva para salvar Prometeu. Zeus, condoído, consente. Sem vida, Quiron desce ao Tártaro para, finalmente, descansar como um mortal.
*
Prometeu - Gustave Moreau -1826/1898
Prometeu, ungido pela dignidade suprema de Quiron, ganha vida eterna. Foi absolvido de seu castigo: Prometeu fora condenado a permanecer acorrentado a um rochedo, tendo seu fígado devorado por uma águia, durante o dia, e reconstituído durante a noite para, novamente, ser devorado no dia seguinte. Permaneceria assim por toda a eternidade, por desafiar Zeus: roubara o fogo de Hefesto para dar vida à Humanidade, sua criação, esculpida em barro.

Prometeu foi, com a morte de Quiron, absolvido de sua pena. Viu-se livre do castigo, impingido por Zeus, herdando a vida do Centauro Imortal, abençoado com a morte, por sua bondade, após adoecer para salvar um amigo.
E por isso somos nós, os Humanos: biliares e quentes. 
- Por isso nosso fígado é o único órgão passível de regeneração - por força do castigo impingido por Zeus a Prometeu. 

- Por isso a alma humana é imortal - Graças à benevolência imortal de Quiron! Ao receber de Zeus a imortalidade, concedida por Quiron, Prometeu vê seu espírito elevado em sabedoria. Salvam-se, assim, os seres humanos, da vida irracional terrena e de sua porção estritamente animal. Assim Quiron concede, a criador e suas criaturas, a vida através da eternidade. Assim nasce a alma: gerada pela benevolência de Quiron, pela divindade de Zeus e pela sapiência eterna herdada por Prometeu. Daí advém nossa trindade real.
Por isso, e para isso temos alma: para sermos sábios e bons e para transmitirmos beleza aos nossos descendentes.
*
Desconfio de Deus! Sempre... Falhamos um com o outro, com frequência, no nosso exercício perpétuo ao espelho, pois somos, um do outro, imagem e semelhança. Mas acredito na imortalidade da alma humana, que vive na memória dos descendentes e sobrevive à morte dos ancestrais. E acredito porque a filosofia me salva de mim mesma. Sempre. E me cura.
*
Em calor e fogo fecha-se o ciclo da dor.
Por isso o ser humano é quente. Por ter sido esculpido no barro e cozido no fogo. Por ter recebido a vida eterna acesa por uma fagulha. E calor não combina com pulmão encatarrado.
          
Por isso, cuspirei tudo! 

Reativo, assim, a ancestral e eterna centelha de fogo que mantém meu sótão iluminado.