segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Praça de Guerra



Baseada 
em fatos reais

Aqui estou eu, como de costume, de forma religiosa, lavando o quintal.
Tenho 3 cães e algumas ações se repetem religiosamente, dia após dia, sem falta…
Lavar o quintal é uma delas, assim como dar comida, sair pro passeio, verificar o bem-estar dos bichos. Faço isso religiosamente.
Eis que, me dei conta de que uso o termo “religiosamente” como sinônimo de “sem falta”, “diariamente”, “rotineiramente”.
Uso “religiosamente” porque, semanticamente, para mim, ação religiosa é aquela que se repete todos os dias. Nada a ver com Deus e os assuntos da fé.
E os assuntos da fé são, para mim, sempre, uma prática subversiva. Essa subversão se estende também ao uso da língua.

Relegere, Religio, Religião

Não estou relendo nem religando nada a coisa alguma.
Não preciso religar minha relação com Deus através dos homens. Nem reler!
Sou Deus, diariamente, quando podo e rego minhas plantas, quando pego uma roupa imunda e consigo deixá-la impecável, quando abro a boca e sai  o som da minha voz, quando coloco a comida seca na panela e retiro dela um alimento suculento, quando trato uma pele podre e a vejo brotar nova e regenerada. Convivo com Deus humanamente, amando e odiando em igual proporção e de forma alternada. Brigamos feito cão e gato mas caminhamos unidos como dedo e anel, em profunda, plena e eterna aliança.
*
Balde com desinfetante, vassoura, rodo, saco plástico... Merda por todo o quintal…
Cenário de guerra.
Tiro o carro da garagem para começar a limpeza…
Descendo a rua, um grupo de mulheres idosas, vem em direção à minha casa.
*
(Detesto começar o dia sendo grosseira, mas não tem como dizer não na cara dessas senhoras idosas a serviço da igreja sem me sentir grosseira…
Elas, e tantas outras, para mim, são mão de obra escrava.
O dízimo pago nas igrejas a cada novo cordeiro que assenta seu traseiro nos bancos das instituições religiosas, não as contempla. Elas saem de suas casas carregadas daquilo que acreditam ser a fé, e vão, de porta em porta, como porta-vozes de Deus, levando “a palavra”; traduzem as palavras de Deus, escritas pelo homem, com base no repertório de suas próprias vidas. É, invariavelmente, uma verdade que não me diz respeito! Mas elas acreditam em suas verdades. Acreditam piamente. E vão de porta em porta. Fazem um trabalho de formiguinha, a serviço da Igreja.
A fé vendida nas igrejas exige inconsciência. E a certeza plantada por essa fé, se traduz em arrogância, porque se considera única e verdadeira. Nenhuma outra verdade, que não a da Igreja às quais defendem, serve! Ninguém que se diga detentor da verdade alheia pode se declarar humilde. É um arrogante nato.
Eu quero apenas manter limpo o meu quintal...
Deixo que sigam de porta em porta, se assim lhes aprouver. Mas, na minha porta, não!)
*
Balde com desinfetante, vassoura, rodo, saco plástico e merda por todo o quintal...
Cenário de guerra.
Tiro o carro da garagem para começar a limpeza.
Descendo a rua, um grupo de idosas. Chamo a cachorra que escapou ao tirar o carro e entro. Fecho o portão. Água ao chão, vassoura em punho, começo a limpeza.

“tac, tac, tac”(ruído de palmas no portão)… São elas!

— Bom dia!
—Bom dia.
—Estamos aqui pra trazer a palavra. Nós gostamos de conversar com as pessoas para trazer a verdade de Deus. A senhora acredita em Deus?
—Não só acredito como falo com ele!
*
(olhos alheios arregalados)
*
—Nós trazemos a Bíblia, que é a palavra de Deus, pra mostrar às pessoas o que o Senhor Jesus espera de nós. A senhora conhece a Bíblia?
—Sim, conheço.
—Então a senhora sabe…
—Senhora, por favor, a senhora me perguntou se eu acredito em Deus, e eu disse que não somente acredito como Ele fala comigo. Esta noite Ele me apareceu em sonho e me preveniu! Me disse que muitos falsos profetas bateriam à minha porta falando em nome d’Ele, mas que eu deveria manter meu coração puro e não dar ouvidos.
—Mas a senhora precisa conhecer a Bíblia! A senhora conhece a Bíblia?
—Conheço, senhora. Mas Deus é anterior à existência da Bíblia. Ele se mostra de muitas formas, com muitas vestes, de muitas cores. A cada um pede apenas amor e coração puro. Nada mais. Entre acreditar na Bíblia e acreditar em Deus, prefiro acreditar em Deus, e Ele foi muito claro: não acredite naqueles que baterem à tua porta falando em meu nome. Muito obrigada, bom dia!
*
(olhos arregalados)
*
—Bom dia!

Elas se foram. Ficaram alguns minutos sob a seringueira, na praça em frente, conversando atônitas, apontando para minha casa. Eu, enquanto isso, operava um milagre: meu quintal, depois de lavado, limpo e higienizado, em nada lembrava o cenário de guerra que encontrei ao abrir a porta pela manhã.
*

Às vezes, numa guerra, é preciso conhecer, e saber usar, as armas do oponente.

— Graças a Deus!

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Enforca-gato



Inspirada 
em fatos reais

Lá estavam eles, sempre juntos. Pipas ao vento, cerol na linha e energia abundante para subir e descer a rua, incansavelmente, buscando a melhor corrente de ar para fazer flanar seus losangos coloridos, adornados por longas e flutuantes rabiolas.
Mas hoje foi diferente: chegaram mais tarde. Trouxeram nas mãos, além das pipas, uma raquete com poucos fios, amarrada a um bambu. Eu, da minha varanda, observava.
O menor pegou a vara ponteada pela raquete e a esticou até a forquilha da árvore. Chacoalhou a raquete. De lá caiu um ninho. Os dois se divertiram esmagando os ovos com os pés. No final da tarde um casal de pais sobrevoava a árvore piando desesperadamente.

Eles voltaram no dia seguinte. Dessa vez nem trouxeram as pipas. 
O maior ficou na retaguarda, enquanto o menor subiu no caixote, apoiado no chão pelo lado mais estreito. Novamente, chacoalhou o galho derrubando outro ninho. O maior se incumbiu de pisotear os ovos.

No terceiro dia esperei por eles camuflada entre os arbustos.
Os dois chegaram e balançaram mais uma árvore. No ninho caído não havia ovos mas ouvi piados suaves e desesperados. O menino maior correu, levando consigo sua presa-troféu.
O menor, distraído, olhava o ninho e não percebeu minha aproximação. Extraía a penugem fina do animal, ainda cego e indefeso, agonizante e quase morto.
Era um predador! Como uma mãe que perdera seu terceiro ninho, não resisti: engalfinhei meus cinco dedos nos cabelos loiros, finos e lisos do garoto. 

Dei-lhe um tranco vigoroso nos cabelos e ele, apavorado, com o pássaro depenado nas mãos, silenciou. Não deu um pio.
O imobilizei com um enforca-gato, juntando suas mãos à frente do corpo para que nunca mais derrubasse ninhos à frente da minha varanda.

Recolhi caixote, bambu, raquete e o ninho. O pássaro morto coloquei dentro de um saquinho branco de tecido. Levei tudo comigo como provas. 
Decidi escoltá-lo até seus pais e ele, passivamente, me indicou um caminho. Um sobe e desce interminável de ladeiras, vielas estreitas sem saída, ruas sem casa.
Chegamos em uma praça onde idosos jogavam dominó e cães de rua dormiam em papelões à porta do banheiro público. Pequenos quiosques vendiam iguarias fuleiras: coxinhas gordurosas e frias, espetinhos ressecados, refrigerantes quentes, sorvidos desesperadamente pelos garis acalorados.

O olhar desamparado do garoto revelava tudo: estava perdido!

Coloquei-o sentado em um banquinho de cimento, com os braços estendidos sobre a mesinha, as mãos onde eu pudesse ver e o interroguei por horas: queria o endereço de seus pais. 

Sobre a mesinha de alvenaria deixei meu celular e esperei que ele telefonasse pedindo socorro. Ele permaneceu imóvel.

Os transeuntes, passavam por nós indiferentes.

E fui desistindo dele. Desisti de interrogá-lo e ele também desistiu de si mesmo. Permaneceu solenemente calado. 

Deixei-o lá na praça desconhecida e com suas bugigangas depositadas sob seus pés. Me afastei sem olhar pra trás. Coração acelerado e já sem ar.

Nesse instante meu relógio despertou, acordei e fui nadar.