terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Dia 16 — Ho-Ho-Ho

Diário da CPTM
365 dias de uma passageira
13/12/2016



Ah, que o Natal chega e a vida de usuário da CPTM ganha nova dinâmica.
A começar pelos horários.
Horário de pico na CPTM está diretamente relacionado com a vida produtiva e escolar da população.
Portanto, não tem mistério: horário de entrada no trabalho e na escola são os horários de pico na CPTM. Ponto final!
Sendo assim, se você chegar à estação às 7 horas da manhã, encontrará o trem cheio.
Se chegar às 17 horas, encontrará o trem cheio.
Se chegar às 14 horas, poderá viajar tranquilamente, sentado, sem pisão no pé.

Mas, quando chega o Período Natalino.... tudo muda!
Os horários de pico matutinos se aliviam gradativamente, com a chegada das férias escolares.
No dia a dia da composição, entre as inúmeras mochilas de trabalhadores madrugueiros, viajam também mochilas de livros e cadernos... 
O perfil dos proprietários das mochilas escolares é bem típico: as mochilas vem acompanhadas pelos celulares com aplicativos de música, não raro, nos meninos, os bonés de aba reta, as tatuagens e os tênis com cadarços levemente frouxos, deixando os pisantes sambando nos pés. Nas meninas, cabelos multicoloridos, piercings no nariz, unhas esmaltadas com adesivos ou cores diferentes em um dos dedos. E o celular plugado aos ouvidos, sem sombra de dúvidas.
E a meninada estuda no trem! Quando sentados, com a mochila como escrivaninha, cadernos espirais universitários abertos, muitas vezes em páginas de simulados. É incrível a quantidade de alunos de cursos técnicos que frequentam os trens.
Técnicos em enfermagem, nutrição, elétrica e mecânica, são os campeões dentre os usuários a CPTM.
Nos horários de pico noturnos predominam os universitários que trabalham durante o dia. O que diferencia uma parcela de estudantes da outra é a vestimenta. Os universitários geralmente trajam roupas sociais, pois voltam à noite da escola depois da jornada de trabalho diurna.
Coisa incrível como a população do trem é fortemente vincada pelo viés estudantil.
Que bom. Mas.... por quanto tempo ainda será assim?
Ando de trem há mais de três décadas e posso afirmar: nunca houve tantos estudantes viajando de trem, de forma tão autônoma e determinada.

A mão de obra do país também vai na CPTM. O perfil difere dos estudantes em colorido.
A pele tem outra cor. O olhar tem outro brilho. O cabelos também... brilham diferente...
Entre os trabalhadores homens predominam as cores mais sóbrias, a calça jeans, a camiseta, o tênis escuro, botas ou sapatos robustos e mochilas. Todos tem uma mochila. Vida itinerante onde a casa real é apenas dormitório e a casa itinerante vai junto, presa ao corpo pelas alças de uma bolsa, onde cabe uma muda de roupa, uma garrafa d'água, a carteira, a marmita, o guarda-chuva... alguns levam a bíblia, um livro, um remédio qualquer. E o espaço no trem é calculado por pessoa, sem levar em conta que cada um que embarca leva consigo a própria casa às costas...
As mulheres, então, que coisa linda! Levam, além casa, o salão de belezas. Levam a muda de sapatos, levam o amor próprio e a autoestima. Arrumam-se cuidadosamente no trajeto. Muitas delas fazem isso em pé, em um espaço exíguo, demonstrando habilidade quase circense, agregando contorcionismo, ilusionismo, malabarismo,  equilibrismo e, acima de tudo, desenvoltura e teatralidade. Levam a capa e espada para defesa pessoal contra os "abusadinhos". Levam a maternidade dentro do celular por onde orientam os filhos à distância. Nossa, levam tanta coisa!
O trem leva tanta coisa que é difícil descrever.
E, no Natal, leva sonhos....
Se esvazia de gentes e leva sacos, caixas e sacolas, como um trenó!
Leva sacos de pertences adquiridos nas ruas de comércio popular de toda São Paulo.
Na linha Turquesa predominam as compras feitas na Rua 25 de Março, Maria Marcolina e José Paulino. Brás e Luz presentes no movimento comercial do Natal.
A região central de São Paulo abastece todo o comércio de bugigangas natalinas de origem chinesa, baratinhas, sub-precificadas às custas da mão de obra escrava. Abastecem as lojas de shoppings com roupas confeccionadas por Bolivianos sub remunerados da região da Luz, Coreanos aprisionados do Bom Retiro, Nordestinos não recenseados de todo o país.
Aqueles sacos e sacolas gigantes, levados dentro da CPTM levam, a precinhos populares,  as mesmas roupas que pendem dos cabides de magazines, diferindo das roupas do shopping apenas na etiqueta, existente nestas e ausentes naquelas....
E os sonhos embarcam na composição da CPTM embalados em sacos de lixo, em sacolas gigantes, amarradas em carrinhos de bagagem, em caixas de papelão fechadas com fita adesiva larga. São tantos pacotes que tumultuam o embarque no horário de pico Natalino, que, pasmem, altera-se sensivelmente.
No período Natalino o horário de pico acontece entre as 12 e 14 horas. O pico é em pleno horário de almoço.
Quando o sol esquenta, as sacoleiras, assim chamadas por conta de suas bagagens, já encerraram suas compras.
Rumam para a estação em grupos de 3 ou quatro. Alegres, falando alto, debochando das vendedoras ou reclamando dos donos das lojas, comemoram os bons negócios. Festejam as boas compras e, ainda mais, as possíveis vendas.
Vão tantos sonhos dentro daquelas sacolas....
Vai a boneca da filha, vai o carrinho do filho, vai o panettone da ceia, vai o celular novo do marido, vai a quitação da fatura do cartão de crédito, vai o bate-e-volta pra Santos no Réveillon.
Vai tanta coisa que o horário de pico deixa de ser meu foco nesta narrativa.
O foco agora é imaginário. Imagino o horário dos fogos, o horário dos brindes, o horário do amigo-secreto em família... Vejo os olhares, ouço a ansiedade. comemoro o presente recebido. Mesmo que não seja o meu!
Isso tudo se concretiza, dentro dos vagões da CPTM, durante as 3 primeiras semanas de dezembro.

Nas outras 49 semanas do ano o pico é outro. Não se assemelha em nada a essa agitação festiva de quem "camelou" o ano todo e foi se refestelar nas compras de Natal.
Nada, nadinha.
Ficam apenas duas certezas em quem observa tudo isso, como eu, há mais de 30 anos: o Natal deveria ser para todos, mas a CPTM, certamente, é somente para os fortes!







domingo, 11 de dezembro de 2016

Dia 15 — Espelho d'água

Diário da CPTM
365 dias de uma passageira.
10/12/2016


 A melancolia da chuva, que lava tudo, fica represada na CPTM.
Coisa melancólica é pegar o trem em dias chuvosos.
A começar pelo trajeto: quem utiliza o trem como meio de transporte, salvo raras exceções,  não possui outro meio satisfatório para a locomoção intermunicipal. Se possuísse, não iria até a estação de trens em dia de chuva!
Caminhar sob a chuva para adentrar um vagão de trens com a roupa molhada, os pés mergulhados no sapato empiscinado, nas mãos  o guarda-chuvas, guardando as gotinhas respingadas que não atingiram a roupa; é bem pouco animador.
Ao chegar na plataforma podemos ver o protagonismo dos guarda-chuvas. Uma profusão de cores e tamanhos, muitos deles abertos e alinhados, sob os quais perfilam-se também os passageiros, à espera da composição. Outros tantos repousam fechados, dentro de sacolinhas de supermercados, encarregadas de represar as gotinhas retidas no tecido impermeável do protetor de respingos.
O chão da plataforma é incansavelmente seco pelas heroicas funcionárias da Faísca. Rodos de meio metro de palheta tentam vencer as invencíveis poças d'água dispostas ao longo da plataforma.





Os camundongos que normalmente festejam ao sol, recolhendo migalhas e farelos, correndo de dormente em dormente, por entre os pedriscos, sob o trilhos, desaparecem. Nem eles gostam da estação em dias de chuva.
Era pra ser poético. Poderia ser uma invocação intimista de memórias de acolhimento. A chuva tem esse potencial...
Mas, por que as estações de trens em dias de chuva só são poéticas nas cenas de filmes, onde os casais enamorados se despedem sob os respingos, trocando juras de amor eterno e reencontro futuro?
Certamente porque faltam nas cenas reais as capas de gabardine impermeável , lindas e impecáveis. Faltam as coberturas em toda extensão da plataforma, protegendo os passageiros. Faltam os Fords Bigode dos quais desembarcam as donzelas em vestidos godê "guarda-chuva", devidamente engomados  e "ensaiotados".
Falta tanta coisa.
Falta inclusive a poesia, capaz de ver um horizonte na janela respingada e de imaginar um espelho d'água no chão encharcado do vagão, molhado pela chuva torrencial que entra pela porta, junto com os passageiros, no momento em que o trem se abre na porção descoberta da plataforma.
Estive, hoje, em um vagão assim. Encharcado!
Eu estava seca, mas havia quem não estivesse... Vim caminhando por sob as marquises do caminho.
Por sorte meu caminho tinha marquises... Mas há caminhos que não as tem!
Olho para o chão do vagão e vejo nele mais do que aquele piso encharcado, pisoteado e escorregadio.
Hoje, durante a viagem, ele foi meu espelho d'água. 
No momento do desembarque foi, hoje, a minha "Fontana di Trevi"...

 

Habitualmente sou a última a descer. Hoje não foi diferente.
Antes de sair abro a bolsa, retiro uma moeda e arremesso, por sobre o ombro, para dentro do vagão, sem olhar pra trás. Ela ficará lá, como memória física do meu desejo.
Fiz um pedido. Espero que ele se cumpra.
Uma moeda só, portadora de vários desejos, que são pra todos...
Desejo um mundo onde a chuva não desabrigue e que seja sempre acolhedora. Um mundo onde haja mais gotas frescas  e revigorantes nas janelas respingadas pelas quais se possa avistar nuvens leves e translúcidas no horizonte...
Desejo mais espelhos d'água e mais caminhos com marquises...
Hoje, diferentemente dos outros dias, não desembarquei sozinha! Decidi desembarcar de braços dados com a poesia.
E ela permaneceu comigo, apesar de você, CPTM.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Dia 14 — Fecundação

Diário da CPTM
365 dias de uma passageira
07/12/2016


Sabe aquela aula de biologia em que você aprendeu como começa a vida?
Aquela aula que diz que a vida inicia com uma história de vitória, que a corrida pela fecundação resulta da luta pela sobrevivência e que o espermatozoide mais forte e capaz é quem vence os obstáculos com sua resistência e chega à frente dos demais e fecunda o óvulo?
Então, esta luta não acaba nunca...
Aliás, ela só aumenta!
A fecundação é apenas um presságio dos dias vindouros, e aqui, em especial, tratarei da sobrevivência dos usuários da CPTM!
Resistir, superar e sobreviver são os lemas do cidadão que anda de trem.
E a fecundação acontece em cada estação, a cada parada da composição na plataforma.
Estranho?
Veja bem:
O princípio da fecundação consiste em um receptáculo (óvulo) que, quando maduro, é liberado de seu ambiente de reserva (ovário) e conduzido por uma via segura (trilhos) até a região da fecundação (útero).
Ali, acolhido pelo órgão que o protegerá durante todo o processo reprodutivo, aguardará pela outra metade da fecundação, o espermatozoide.
O espermatozoide vem, invariavelmente, de um outro corpo, daí a natureza sexuada do processo reprodutivo.
Adentra a estrutura acolhedora através de um duto, que o conduzirá ao óvulo.
Mas, não virá sozinho.
Virão aos milhares, apressados, dispostos e competitivos. Cheios de pressa e no afã de atingir em primeiro lugar o objetivo final: o óvulo.
Mas, ao chegarem, perceberão que a chegada é apenas o início do drama. Estarão ali, aos milhares, cercando uma estrutura na qual, visivelmente, não haverá lugar para todos.
A chegada deveria ser o ponto final. Mas o ponto final é apenas o começo do drama.
Não bastou ser o mais ágil, nem o mais rápido, nem o mais forte.
O espermatozoide vitorioso deverá contar, também, com a sorte.
Sim, porque aquele que chegou primeiro pode ter chegado no ponto em que não há acesso ao núcleo do óvulo. Ficará ali, se debatendo contra a membrana do óvulo sem conseguir adentrá-la
Há apenas um ponto de acesso ao núcleo do óvulo e apenas um: o mais ágil, mais rápido, mais forte e mais sortudo conseguirá entrar.
E a junção dessas qualidades não se dará de forma diretamente proporcional à grandeza de cada uma delas. A combinação se dá levando em conta o fator sorte.
Dentre aqueles que atingiram o óvulo primeiro (mais ágeis e mais rápidos) haverá aqueles que conseguirão se sobrepor aos demais (mais fortes) e, dentre estes, haverá aquele que estará no exato ponto de acesso, através do qual o centro do óvulo será coroado pelo núcleo masculino vencedor.
Sendo assim, o espermatozoide fecundador, considerado o mais forte, ágil, rápido, pode ter sido apenas o mais oportunista e beneficiado pelo beneplácito do acaso...
Tudo isso me aconteceu hoje! Novamente. Como acontece todos os dias.
Aconteceu comigo, nesta minha rotina de passageira, desde que saí de casa em direção à estação.
Caminhei rapidamente até chegar à catraca, onde outras pessoas já se encontravam perfiladas, acotovelando-se para entrar.
Adentrei a estação e me posicionei, diferentemente dos outros dias, em um outro ponto da plataforma. Meu objetivo era descer já ao pé da escada rolante da Estação Brás, para evitar o corpo a corpo do desembarque.
E lá vem ele. Não o meu querido trem de ferro diário! Vinha, lá longe, um trem cargueiro que, quando surge no horizonte, é certeza de atraso na viagem prevista em pelo menos 15 minutos.
Estes quinze minutos são suficientes para triplicar a quantidade de passageiros na plataforma à espera do embarque.
E assim foi: 15 minutos de espera e acúmulo de passageiros.
Eu ali, em um outro ponto da plataforma, diferente do habitual, sem a certeza absoluta de que ali se abriria uma porta. Se meu cálculo estivesse errado, não teria a mínima chance de viajar sentada até o Brás.
Passados 15 minutos, eis que lá vem o tão esperado coletivo.
Trepida sobre os trilhos, garboso e reluzente.
Eu, sem saber se minha posição na plataforma estava correta, vejo formada atrás de mim uma multidão que foi se posicionando tendo a mim como referência, já que me posicionei antes de qualquer outro passageiro naquele ponto de embarque.
E lá vem o trem, saído de seu ambiente de reserva (garagem), "madurinho da Silva", pronto para acolher os vitoriosos que conseguirem adentrar no ponto de acesso ao seu núcleo. Vem conduzido por uma via segura (trilhos), até a região mais fecunda da estação (plataforma).
E começa a guerra pela sobrevivência, onde cada um, a postos, pretende fazer valer sua força, sua agilidade, sua capacidade de levar ao interior do trem seu material humano.
Antes que o trem estacionasse o movimento na plataforma começou. Fomos ficando cada vez mais compactados, tendo a borda da plataforma como delimitador.
Quem disse que um embarque não é um exercício de sobrevivência nunca viajou em um trem da CPTM.
O trem, despontando no horizonte, agita a tranquilidade da plataforma. As bolsas, penduradas à tiracolo, escorregam dos ombros para as mãos. O espaço existente entre os pacientes-passageiros que aguardam o embarque diminui, assim como diminui, também, a paciência. A agitação faz os corpos se aproximarem até parecerem um e a movimentação, antes independente, se torna grupal. É possível, nestas situações, fazer deslocamentos indesejados, na direção contrária a que se quer ir e, estando ali no aglomerado do embarque, é impossível sair.
A corrida pela sobrevivência se faz cada vez mais presente até que o trem estaciona.
São alguns segundos até que as portas se abram. A movimentação dos corpos se assemelha à luta pelo primeiro instante de vida fecunda em um útero.
Ali vencerá não o mais forte, apenas. Não o mais rápido, apenas. Não o mais ágil, apenas.
Ali vencerá aquele que tiver conjugadas todas estas características de forma satisfatória.  Aquele que se mostrar suficientemente capaz de penetrar a estrutura de forma segura.
Os instantes que antecedem a parada total do trem são de expectativa: ele reduz sua velocidade gradativamente e aos poucos é possível perceber se o ponto de espera coincidirá exatamente com o ponto de abertura da porta.
Às vezes o trem para e as portas não se abrem. Aí a agitação aumenta ainda mais. O vão de aproximadamente 15 centímetros existente entre o trem e a plataforma transforma-se em uma falésia abissal. Nestas situações o risco é ainda maior quando o trem, depois de estacionado, com as portas ainda fechadas e os pontos de embarque definidos, em torno dos quais se aglomeram os pacientes-passageiros-impacientes; resolve fazer ainda um último deslocamento de centímetros até atingir o ponto exato de embarque.
Pode ser a morte. Ou pode ser a sorte...
Hoje foi assim!
Embarque estação Brás — Integração CPTM-Metrô
 Estávamos ali, na luta pela sobrevivência. Embarque matutino. Com predominância de homens.
Algumas mulheres, mas os homens em maioria. Mais altos, mais fortes, mais impacientes e apressados. Todos compactados em torno da porta. O trem estacionado. As portas fechadas...
Como eu havia mudado meu ponto de embarque habitual, acabei calculando mal o ponto de acesso ao interior do trem. Havia ficado próxima à porta, mas na posição em que o trem parou fiquei distante do ponto de abertura. Não haveria chance de entrar e sentar....
Já conformada com a expectativa de viajar em pé, vejo o trem se mover, pouco menos de 40 centímetros.
De repente, posiciona-se à minha frente o centro da porta, suas borrachas pretas de vedação situadas exatamente à minha frente, alinhadas com o septo do meu nariz. Numa posição ideal, num ponto equidistante entre as extremidades esquerda e direita do meu corpo. Exatamente no centro.
A movimentação natural dos passageiros na plataforma exigiu de mim uma resistência maior, para que o ponto ideal em que me encontrava não fosse ocupado, no último instante, por um homem, mais forte, mais apressado, mais imperativo do que eu.
Eis que a porta se abre e a movimentação da plataforma me propulsiona para dentro do trem.
Uma movimentação caótica, tumultuada, conflituosa.
Fui a primeira a entrar e em segundos estava eu ali, vitoriosa, sentada no banco duplo lateral, na janelinha. Meu lugar preferido!

Hoje, nessa luta diária pela sobrevivência na plataforma, não teve mais forte, não teve mais rápido, não teve mais ágil.
Aquele grande útero que me conduz diariamente da estação Ribeirão Pires até o Brás, hoje, foi fecundado por um cromossomo Y, que por um golpe de sorte encontrou o ponto de acesso antes que todos os outros, a despeito da força, do tamanho e da agilidade.
Hoje eu fui o espermatozoide mais capaz do que os demais...
Sorte!




quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Dia 13 — Metamorfose

 Diário da CPTM
365 dias de uma passageira
29/11/2016


 Pra Aline Réa.

O trem é um mundo à parte. Mas os trens da CPTM são uma verdadeira Galáxia.
Várias situações orbitam simultaneamente dentro de um vagão, numa velocidade tal que, se situações semelhantes acontecessem no céu, o mundo já teria se auto destruído e nossa querida Via Láctea já teria se transformado em um buraco negro de proporções capazes de engolir e absorver todo o Universo.
Vemos ambulantes, pedintes, mães com crianças no colo, em pé, enquanto o bonitão “dorme” sentado no banco preferencial... Vemos celulares e mais celulares, de todos os modelos e cores, tamanhos e definições, acomodados nas mãos, lateralmente perfiladas, dos passageiros que entram no vagão e saem do mundo, mergulhando nas telas dos aplicativos de música ou nas realidades paralelas das redes sociais, onde só transitam os lindos e felizes desse universo massacrado.
Hoje, na ida para o trabalho, encontrei um microcosmo gigantesco, viajando dentro de uma bolsa de mulher.
Uma bolsa laranja, até que discreta, não fosse pela cor: vibrante como os utensílios que dentro dela viajavam, levados para dentro do vagão pela moça que, ao sentar, iniciou uma verdadeira transformação...
A moça embarcou uma estação depois de mim.  Sentou-se em um dos bancos laterais, no assento do corredor, que vagou assim que ela entrou. Eu, sentada em ângulo reto com a moça, pude observar toda a movimentação.
Num misto de surpresa, admiração e inveja eu a vi promover uma mudança indescritível, mas, vou tentar descrever.
Entrou, sentou-se, acomodou as duas bolsas sobre o colo (uma lisa, cor de laranja, de onde sairia a transformação, como saem coelhos da cartola de um mágico, a outra, listrada, onde talvez houvesse um lanchinho...)
Cabelos presos em um coque fixado no alto da cabeça com um espeto oriental. Rosto lavado, fone nos ouvidos.
De repente ela abre a bolsa laranja e, de dentro dela surge uma outra bolsinha menor, fechada por um zíper. 
Começa o processo: como numa bancada de penteadeira ela organiza sobre o colo duas embalagens, uma esponjinha rosa e um pincel de cerdas abundantes.
A esponjinha, friccionada no conteúdo da primeira embalagem, é utilizada para fazer a cobertura da pele, que aos poucos vai se uniformizando, igualando-se em textura a cor.
Na sequência o pincel de cerdas abundantes entra em ação.  Ela o gira, determinadamente, sobre o conteúdo da segunda embalagem que, suavemente se esfarela, produzindo um pó finíssimo que adere ao pincel e vai do pincel ao rosto, em movimentos circulares e suaves e, ao mesmo tempo, constantes e vigorosos, dando à pele, uniformizada pelo conteúdo da primeira embalagem, uma aparência sedosa e iluminada.
A moça recolhe novamente as duas embalagens e as reconduz para o interior da bolsinha com zíper que, ao final, voltará para o interior da bolsa laranja.
Mas o processo continua e mais duas embalagens saltam para fora a bolsinha com zíper... e mais um pincel, de extremidade fina e esponjosa.
Agora o alvo da moça são seus olhos: ela os adornará utilizando um trio de cores, dispostas em três pequenas divisórias, dentro da embalagem que estava na bolsinha com zíper, na bolsa laranja.... Utilizará o pincel esponjoso. Com a pontinha do pincel fará o contorno preto em torno dos cílios, com um traço tão fino e preciso que pareceria impossível ter sido traçado dentro de um trem em movimento. Mas ela o fez com perfeição.
Na sequência passa a colorir as pálpebras, alterna duas cores em tons degrade, dando aos olhos definição, profundidade, expressão e brilho. Volta a embalagem para a bolsinha e abre a segunda embalagem, que se encontrava sobre o colo, aguardando….
Era uma embalagem em formato cilíndrico que, desrosqueada, fez surgir um pincel de cerdas curtas, firmes e circulares, que deram corpo e volume aos cílios. Tudo isso segurando o espelho com uma das mãos, numa manobra de extrema habilidade.
Já não era a mesma pessoa.  Daquela bolsinha ainda saiu um batom cor de boca, um par de brincos, um anel e uma escovinha que delicadamente penteou as sobrancelhas.
O toque final ficou por conta de uma esponja grande, redonda, que ela pressionou sobre a pele, tirando os excessos...
O resultado era inacreditável!

Guardou tudo na bolsinha com zíper, devolveu-a à bolsa laranja e, quando eu já tinha dado a transformação por terminada, a moça sacou de dentro da bolsa laranja um saquinho de veludo azul, do qual saiu um alicate de cutículas, e um vidrinho de esmalte incolor!
 A moça aparou os excessos de pele do contorno das unhas e as fez brilhar, usando o esmalte.  Agitou as mãos rapidamente para que secassem enquanto eu olhava e pensava: se fosse eu estaria, nesse instante, com as pontas dos dedos sangrando.
Qual o quê: unhas perfeitas conquistadas entre as estações Utinga e Tamanduateí!
Finda a mutação, guardou o kit manicure no saquinho de veludo, devolveu-o à bolsa e tirou de lá uma caixinha, da qual surgiu um gigantesco par de óculos de grau, estilo aviador, com armação dourada.
Era a moldura que faltava para a transmutação se dar por completa.
Já na estação Mooca, com os utensílios guardados em seus respectivos lugares, preparou-se para descer no Brás.
Da bolsinha listrada, que ainda não tinha sido utilizada, onde eu acreditava que houvesse um lanchinho, por conta da lata de refrigerante aparente, saiu um saquinho, do qual a moça retirou um par de sapatos com saltos altíssimos!
Calçou sem cerimônias, guardou tudo e levantou-se, rumando em direção à porta do vagão para o desembarque.
Eu permaneci ali, sentada, durante alguns segundos, tentando me imaginar em situação semelhante, promovendo uma verdadeira reforma de imagem no percurso Ribeirão Pires – Brás!
Ela desceu. Eu desci também.  E desci refletindo sobre o ocorrido. Me percebi tomada pela mais absoluta preguiça de fazer o mesmo. Pensei em quantas mulheres driblam o sacolejo do trem para valorizar a própria expressão com uma maquiagem bem-feita.
— São admiráveis!
 Eu, ainda absorta com o ritual que observei, do início ao fim, somente após desembarcar foi que me dei conta que durante toda a viagem a moça esteve de chinelos...
Ao pé da escada rolante a moça puxou o espeto oriental que fixava o coque, deu uma leve agitada na cabeça, olhando para os lados, alternadamente, fazendo arejar os cabelos e deixando-os cair sobre os ombros. Seguiu a passos firmes, aparentemente determinada, confiante que só ela.
Compreendi tudo quando vi que a moça, nas costas expostas pelo modelo da blusa, ostentava, tatuada, uma borboleta.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Dia 12 — Sorte é pra quem tem!

Diário da CPTM
365 dias de uma passageira
22/11/2016

Sou de uma fidelidade canina, apesar de dar minhas escapadinhas...
Hoje dei uma delas. E quase me dou mal!
Sente o drama:
Horário marcado para reunião,  ensaio na sequência, aula no fim do dia. Uma movimentação com três cidades-destino diferentes, em um único dia.
E tudo isso acontece, habitualmente, passando por um deslocamento que engloba aproximadamente 9 cidades, perfiladas entre as extremidades, atravessadas, uma a uma, tendo vista garantida pela janela lateral, do trem e posteriormente do Cometa, no meu exercício de infidelidade semanal onde a CPTM deixa de protagonizar meus deslocamentos e se vê substituída pelo transporte rodoviário. E, ao final do dia refaço o deslocamento, no sentido inverso, até retornar ao ponto de origem.
Cerca de 180km de percurso num único dia, com saída às 7, chegada às 22. Oito horas de atividades distribuídas entre as 3 cidades e, no retorno, uma, paradinha para trocar de meio de transporte até retornar aos braços da minha CPTM amada, que me traz de volta à minha cidade de origem, ao final  do dia.
Parece insano?  Mas faço isso todo as as semanas. A cada 15 dias, duas vezes na semana.
Hoje decidi, dentro da infidelidade semanal que me é habitual, trair ambos: CPTM E COMETA.
Decidi tomar meu destino nas mãos, ser dona do meu caminho e me deixar guiar por satélites, deixando o percurso a cargo do GPS. Endereço-destino definido, programei o percurso mais rápido e fui...

Num dos habituais recálculos de rota, caí em uma via pedagiada, e aí começou o meu martírio, num dia que tinha tudo pra ser tranquilo. CPTM e COMETA  não estavam nos meus planos, a não ser na última porção do dia quando eu, já cansada, entraria em um dos vagões da minha CPTM querida, estenderia o esqueleto em um dos bancos duplos laterais (meus favoritos),  esticaria as pernas sob os bancos a minha frente e... dormiria até chegar em Ribeirão!

Era um plano perfeito mas foi desmantelado por um pedágio!
Eis que o Waze, meu amigão camarada de todas as horas engarrafadas, recalcula minha rota, sem atualizar os dados dos valores existentes na minha carteira.

Caí na Praça de pedágios do Rodoanel, Imigrantes, rumo a São Paulo. Míseros R$3,20 e eu não os tinha: minha carteira, há um bom tempo, anda vazia, já que o uso do cartão de movimentação bancária substitui o uso de dinheiro vivo.

Uso, eventualmente, vias pedagiadas, mas levo o dinheiro  previamente separado para tal. Mas hoje meu percurso só previa pedágios no meu segundo turno de deslocamento, para  o qual providenciaria os recursos no intervalo.

Foi um carão! A praça de pedágios, atrás de mim, esperando que a coordenadora liberasse a cancela. Eu passaria e esperaria na faixa zebrada pelo boleto de pagamento pela minha infração: não ter dinheiro na carteira.

Minutos de espera até receber o boleto, que não era um boleto... E também não era esta a punição! A punição real seria retornar à praça de pedágios para sanar o débito já que não havia a hipótese de realizar o pagamento em banco ou por vias eletrônicas.

Desta forma, meu pedágio de R$3,20 se transformaria no pagamento de 3 pedágios: o devido, mais os pedágios de ida e volta até uma das praças de pedágio indicadas para realizar o pagamento.

Sem contar o desgaste com  gasolina, já que a praça de pedágio mais próxima fica situada a aproximadamente  30km de distância da minha casa.

À noite, buscando na "infernete" uma solução para a questão, entrei em um site de reclamações e encontrei inúmeras situações como a minha, que foram solucionadas de forma imediata, sem o transtorno de qualquer deslocamento até a praça de pedágios mais próxima que, em se tratando de Rodoanel, fica distante de tudo.... 

Cortei caminho e liguei no 0800 da SPMAR. Relatei o ocorrido a um rapaz muito atencioso que me atendeu. Depois de alguns segundos de espera, aguardando a verificação do rapaz junto ao setor responsável,  tivemos o seguinte diálogo:

— Senhora, infelizmente não existe opção para pagamento bancário, porque a SPMAR não tem convênio para esse serviço.
— Então, mas como faço? Moro distante das praças de pedágio sugeridas e não utilizo o rodoanel com frequência. Não faz sentido retornar lá por apenas R$3,20!
— Sim, senhora, mas não tenho como ajudá-la. A senhora pode não realizar o pagamento e depois solicitar ao departamento de cobrança que efetue a regularização.
— Mas aqui diz que se eu não pagar em 5 dias pagarei uma multa de 120 UFIR! —  (como se pode constatar, a UFIR é uma alíquota de cálculo que nem existe mais.... http://idg.receita.fazenda.gov.br/orientacao/tributaria/pagamentos-e-parcelamentos/valor-da-ufir).
— Sim, senhora, mas não tenho como ajudá-la. Somente depois de expirado o prazo normal de pagamento que o setor de cobrança pode regularizar a pendência.
— Olha, Douglas, eu sei que é esta a orientação que você recebe, mas sei também que existe solução, pois encontrei no site ReclameAqui inúmeras queixas semelhantes à minha e a solução foi imediata. Então eu gostaria de resolver sem recorrer ao ReclameAqui. Seria possível?
— Senhora, esta foi a orientação que eu recebi, mas vou verificar novamente pra ver o que consigo para a senhora...

Mais alguns segundos de espera até que Douglas retornasse à ligação com a novidade da noite:
— Senhora, ... a senhora tem sorte!
— Mesmo?
— Sim! O atendimento do setor de cobrança é até as 22horas (eram 22:19) mas por sorte consegui falar com um funcionário que ainda estava lá! Ele me pediu para pegar seus dados.

Informei novamente meus dados: nome completo, CPF, habilitação, cor, ano e modelo do carro, praça de pedágio e pista da ocorrência.
Em seguida me deu os dados da conta bancária na qual eu deveria fazer a regularização.

Isso tudo aconteceu depois de um dia longo e inesperado:
— Falha na expectativa de conduzir meu próprio caminho, ter o destino nas próprias mãos, deixar-me guiar pelas estrelas... ( ou satélites, nem sei!)
— Reunião com hora marcada, com duração prevista de uma hora, com atraso de quase 50 minutos e duração de quase 3 horas. 
— Ensaio desmarcado, mente exausta, corpo em frangalhos, aula desmarcada, gasolina gasta em vão, aquele desejo de voltar pra casa dormindo no banco duro da CPTM, mas tendo um carro nas mão para dirigir no caminho de volta.

Ainda bem que a SPMAR existe, para me lembrar que sou uma pessoa de sorte!
Quase duvidei...

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Dia 11 — Armistício

Diário da CPTM
365 dias de uma Passageira
21/11/2016

Hoje foi um dia de guerra!
Daquelas que você fica dias preparando o embornal...
Na noite anterior, insônia. Nas refeições que antecedem o dia, inapetência....
Ansiedade, giro mental elíptico e interminável. Alguns chamam de looping. Eu chamo de neurose.
Sou uma neurótica! Dentro da minha cabeça passam-se todos os roteiros do dia, das frases, das abordagens. É um inferno residir dentro do meu cérebro, reconheço!
E, para mim, carregar essa cabeça, 24 horas por dia, um inferno dobrado. Porque ela pesa...
Uma cabeça humana pesa, em média, 3.500g
Três quilos e meio sobre o pescoço. Não há cervical que aguente.
Mas uma cabeça neurótica como a minha pesa bem uns 400 quilos.
E hoje minha cabeça neurótica tinha um compromisso às 9 horas. Acordei às 6h. Às 7h estava a postos na plataforma esperando o trem.
Eu e ele, novamente juntos, depois de 5 dias de hiato.
E ele, pra me castigar, demorou!
E veio cheio...
Atrasado e cheio, mas consegui sentar!
Um bom presságio...
Fomos bem, até que me dei conta do horário. Naquele horário eu deveria ter acrescentado ao menos 30 minutos no tempo necessário para chegar ao meu destino sem atrasos.
A CPTM faz com que a palavra atraso seja recorrente na minha vida...
E, dito e feito! 25 minutos de espera na plataforma da integração trem/metrô no Brás!
Meus deuses, aquilo é desumano!
E a guerra, que caminhou durante dias na minha cabeça, mas que de fato deveria começar somente às 9 horas, hoje começou às 8.
E foi um corpo a corpo impossível de descrever. Daqueles que subvertem as leis da física e alojam inúmeros corpos ocupando o mesmo lugar no espaço.
E minha cabeça fritando ali dentro.....
Senti uma súbita revolta contra o transporte sobre trilhos.
Era pra ser melhor, gente! Este é o melhor meio de transporte existente! Inexplicável esta conjuntura de aperto!.
E minha cabeça fritando dentro do coletivo....
Aquela revolta latente, arquivada para dali a alguns minutos: e foi um show de paciência com essa revolta que me poderia ser útil.
E a cabeça neurótica dizendo para si mesma: calma, vai dar tudo certo.
Mas meu desejo de transformar a integração CPTM/Metropolitano de São Paulo em um indivíduo humano, e assim conseguir sair no tapa com ele, às vezes chega ao limite do incontrolável.
Enfim.... cheguei amarrotada ao compromisso, a cabeça fritando, a neurose batendo níveis assustadores, apesar de transparecer o maior autocontrole da face da terra.
Afinal, o show tem que continuar.
Começa a guerra. Batalha sim, batalha não.... uma vencida, outra perdida. Chegamos ao final.
Já nos estertores, quase na hora de ir embora, fui abordada por um cidadão querendo medir forças. Me abordou, cheio de razão, apontando meus sapatos, a marca dos meus óculos, como se isso fizesse de mim uma pessoa menos merecedora dentro de uma luta por direitos. Ali a panela de pressão que é minha cabeça quase explodiu!
Mas, como o show ainda não terminou, vou deixar pra liberar a pressão mais tarde.
Volto pra casa.
Trem vazio.... horário de almoço. Amigo ao lado, jogando conversa fora, faz a viagem ficar mais curta.... ou melhor, mais breve.
Desço e caminho pra casa, blasfemando contra a CPTM, essa carrasca que mantém aceso o fogareiro que esquenta minha cabeça. Diariamente, me cozinha em fogo baixo, trazendo a cada viagem uma surpresa. E minha cabeça neurótica arquivando todas as trapaças que me são impingidas por ela pensando: um dia dou o troco.
E quem diria, esse dia foi hoje!
Ela me espreme, me atrasa, me apoquenta a moleira, diariamente, mas hoje, quem diria... descubro que ela vai pagar o feijão este mês na minha casa...
Sua linda, obrigada pelo apoio!
Tá perdoada... Guerreamos outra hora!
Apoio: CPTM


quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Dia 10 — Infidelidade

Diário da CPTM
365 dias de uma passageira
16/11/2016

Para: Maurício, 
Sueli, 
Heloísa,
Alline,
Dayse, 
Luciana, 
Alfredo
 E demais colegas da Serra do Japi...


Hoje preciso relatar um caso de infidelidade!
Para tanto contextualizarei brevemente o cenário dos fatos.
Nasci e cresci em Ribeirão Pires, uma cidadezinha da região metropolitana de São Paulo, cortada, literalmente, pela ferrovia: a antiga Estrada de Ferro Santos - Jundiaí.
Placa Original de Identificação
Sim, nos meus tempos de infância era possível embarcar em um trem em Santos e desembarcar somente em Jundiaí,  numa viagem linda, que perpassava paisagens diversas, desde a Serra do Mar até a Serra do Japi,  onde ficam as extremidades da antiga ferrovia, respectivamente, as cidades de Santos e Jundiaí.
A estrada de ferro, àquela época, pertencia à RFFSA, Rede Ferroviária Federal S/A, a quem coube gerir todas as estruturas da malha ferroviária construída pela São Paulo Railway Company, que durante os idos de 1800 tratou de rasgar as terras paulistas, fincando trilhos sobre o chão, cruzando o estado, num dos maiores processos de integração litoral-planalto deste estado, desde o tempo dos Bandeirantes.
Instalação dos trilhos pela São Paulo Railway Company
A viagem de trem era um acontecimento. Os trens, nos moldes dos trens ingleses, tinham bancos estofados, com encosto basculante. Desta forma era possível aos passageiros alterar a o sentido da observação da paisagem apenas baldeando e invertendo o lado do encosto.
Até hoje é possível ver sinais do estilo Inglês nas estações da linha Turquesa, pertencente à malha ferroviária da CPTM.
Visão Atual
Aliás, acho importante frisar: a malha ferroviária paulista é a mesma desde o tempo dos Ingleses.
A despeito de todas as mudanças operacionais feitas pela CPTM, nenhum metro de trilho ferroviário foi fincado depois dos Ingleses, lamentavelmente.
E o pior: a malha ferroviária virou uma confusão só.
Hoje em dia não existe mais o trem para Santos. A linha foi desativada por absoluta falta de conservação. Atualmente trafegam somente os trens de carga, no percurso que compreende as estações de Rio Grande da Serra, Paranapiacaba e Santos. 
O percurso Santos-Jundiaí, então, virou um quebra-cabeças de 1500 peças. Herói é o cidadão que consegue fazer o percurso e chegar ao seu destino no horário desejado. Aliás, nem o percurso existe mais. Hoje somente é possível trafegar entre Rio Grande da Serra e Jundiaí.
Perdemos todo o percurso da Serra do Mar, lamentavelmente, para os passageiros habituais e para os turistas.
Moro em Ribeirão Pires e vou a Jundiaí semanalmente. A cada quinze dias faço esse percurso duas vezes na semana.
Se fosse de trem, nos idos da RFFSA, embarcaria em Ribeirão Pires e desembarcaria em Jundiaí.
Visão atual - Estação Jundiaí

No meu embarque, eventualmente, já estariam dentro do trem passageiros advindos das cidades de Santos, Paranapiacaba, Rio Grande da Serra, rumando em direção ao interior. 
Hoje isso é impossível: a malha ferroviária perdeu as estações de Santos e Paranapiacaba como polos de embarque de passageiros, num claro encolhimento da malha ferroviária implementada pelos Ingleses.
Agora, em tempos de CPTM, para fazer o mesmo percurso, na mesma linha, com duas estações a menos, um passageiro qualquer precisa transitar por 3 linhas férreas diferentes: a Turquesa (10), a Coral (11) e a Rubi (7), com direito a 3 baldeações, sendo uma delas ligando a Linha 7-Rubi à... própria linha7-Rubi, numa demonstração clara dos avanços trazidos ao passageiros pela "operacionalização" das linhas promovida pela CPTM.
Os nomes das linhas são uma carinhosa menção às gemas preciosas brasileiras, como se a carga levada pela CPTM, os passageiros, para eles, tivesse algum valor...
mapa da Rede - CPTM 2016
Custo a crer que esta alteração operacional facilite a vida de alguém.
Mas tenho certeza absoluta de que ela somente acontece para compensar a falta de investimentos na malha ferroviária, para mim, o meio de transporte de passageiros (e cargas também) mais inteligente já inventado pelo homem!
Bem, resumindo: perdemos a visão da paisagem, aumentamos o tempo de deslocamento, aumentamos o desgaste dos passageiros, inviabilizamos parcialmente o uso da ferrovia como meio de transporte habitual para aqueles que querem transitar do litoral para o planalto.
Isso porque estou falando do deslocamento de Ribeirão Pires à Jundiaí. De Santos a Jundiaí, então, ficou inviabilizado o deslocamento sem a intervenção do transporte rodoviário.
E aí começa minha história de infidelidade...
Meu percurso semanal até Jundiaí é feito pela Rodovia Bandeirantes, já que o trajeto pela ferrovia demandaria mais tempo do que o ideal.
O nome da rodovia é uma homenagem aos desbravadores do sertão paulista, que saíram cortando terras, matando e desalojando índios, em nome do progresso do estado, da expansão de fronteiras do país e da busca por riquezas.
Esta busca por riquezas desconsiderou o elemento humano, para o qual deveriam convergir as riquezas conquistadas.
Como também foi desconsiderado o elemento humano na opção pela adoção do transporte rodoviário, em detrimento do transporte ferroviário.
O transporte rodoviário surgiu como propulsor da economia, mas essa propulsão desestruturou toda a distribuição de riquezas, que deveriam subir a serra de trem e ganhar o interior.
Eu moro na serra mas com frequência vou ao interior. 
Nesta minha ida, depois da metade do caminho, pratico minha infidelidade semanal.
Tenho este encontro marcado há anos. Com dia e hora certas para acontecer.
É um encontro fortuito, dura apenas alguns minutos e acontece, CPTM, por culpa tua!
Vou até ele, entro, me acomodo, espero a paisagem mudar de ares e de cores.
Hoje foi este dia.
CPTM, hoje, como faço há anos, eu te traí!  



quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Dia 9 — Olho de Vidro

Diário da CPTM
365 dias de uma passageira
15/11/2016

A CPTM é um universo à parte!

Tudo o que acontece dentro de um vagão reproduz, de forma perversa, aguda e escancarada o que acontece nas ruas, nas casas, no mundo e fingimos não perceber.

Quando acontece nas ruas, temos a opção de cruzar a via, mudando de calçada, desviar o olhar para uma vitrine, protegendo as retinas desta ou daquela aberração. Podemos construir um discurso sociológico desonesto, transformando vítimas em algozes, vilões em heróis em uma fração de segundos. Isso quando você está livre para ir e vir, falar o que quiser e deixar os ouvintes a ver navios.
Mas, quando a coisa acontece dentro de um vagão de trem, aí, meus caros, a coisa muda de figura. 
A não ser que o trem esteja parado na estação e você tenha a opção de descer. Caso contrário você está trancafiado ali, vivendo aquele universo paralelo, sem opção de fuga enquanto o trem transita entre uma estação e outra.

E é aí que a porca torce o rabo.

Porque você ouve pregadores sem ter ido à igreja. E a religião se transforma no mais vigoroso instrumento de tortura existente. Não há fé que resista aos pregadores de trem, invariavelmente usuários do mais estridente timbre de voz possível, aliado a uma arrogância aguda, que não pode ser de Deus, de jeito nenhum.
E os caras gritam, com gosto! Deve ser um prazer quase carnal aqueles gritos! Gritam numa intensidade de fazer corar qualquer Mc de responsa! Não há projeto "PSIU!" que sobreviva a um pregador de trem. E a autoridade? É uma autoridade que não coaduna com a humildade de Cristo, em nome de quem todos eles, invariavelmente falam.

E os leilões?...
Você já foi a um leilão? Não?
Então venha fazer uma viagem de trem.
Tem leilão de chocolate, de pendrive, de fone de ouvido, de picador de alho, de balinha em pó com pirulito. Ali vendem até a mãe lavando roupa no tanque, sem remorsos! E, olha, o melhor momento do pregão é quando, em manobra ensaiada com perfeição, dois vendedores aliados se comportam como concorrentes.
Iniciam a venda oferecendo dois chocolates por 1 real. Aí o aliado ( que banca o "concorrente") grita: "gente, é melhor vender barato do que perder pro Rapa" e oferece o mesmo chocolate do rival (que na verdade é aliado) pela bagatela de 4 chocolates por 1 real. Fala sério: uma barbada! E o desfecho é lindo.... quando o primeiro a oferecer seu produto no leilão se irrita (de mentira, é claro) e diz: Ah, não! que é isso, mano, assim você me quebra. 4 por um e muito barato! ah, mas vc quer me quebrar? então lá vai: aqui comigo, 6 chocolates por um real. A arquibancada vai ao delírio! é um tal de chocolate rodando no vagão que daria pra fazer inveja ao coelhinho da Páscoa ( ah, na páscoa tem pregão de ovos pra comemorar a ressurreição do menino Deus... que os pregadores não me ouçam).

Tudo isso acontece nos 5 breves minutos que separam, em média, uma estação da outra. E os vendedores dão fim a cerca de duas caixas de chocolates em menos de cinco minutos. A bolsa de valores deveria contratar esses caras! leiloeiros de primeira.

Mas, os negócios no vagão não se restringem à venda de chocolates e utensílios....
Existe também o ramo das esmolas.

São pedintes de todos os tipos.
Grupos organizados que distribuem santinhos com solicitações de auxílio a casas de recuperação, são crianças, vigiadas por adultos, que passam papeizinhos pedindo ajuda pra comida dos irmãos em casa, são adultos com crianças de colo pedindo ajuda pra comprar o leite das ciranças.

Pego o trem há anos e há anos vejo um cidadão que pede ajuda pra sua filhinha Giovana, que tem 1 aninho e ficou em casa chorando de fome.
É duro, pai de família, mãe de família, deixar a filhinha chorando e vir pedir no trem. É duro, pai de família, mãe de família... 
Sim, é duro! Mas, do tempo que eu viajo de trem e do tempo que essa Gionava está chorando em casa com fome, das duas, uma: ou a Giovana não existe ou ja deve estar adulta e esse pai segue pedindo auxílio em memória do tempo em que ela era criança ...

Assim acontece também com inúmeros pedintes doentes, com diversas mães desempregadas, etc.
É a profissionalização da desgraça alheia!

Sim, porque existem "Giovanas" chorando de fome, existem doentes em fase terminal, existem crianças precisando de comida pros irmãozinhos menores. E existem aos milhares por todo o país. Mas eles certamente não estão representados nesta indústria de pedintes do trem.

Todas caras conhecidas dos habituèes do trem. Tanto que nem pedem mais pros passageiros habituais. Pedem somente para as carnes novas do pedaço. Vítimas novas do estelionato da miséria sobre trilhos.
Eu, por exemplo, reconheço um estelionatário pelo tom de voz. Dou esmolas, sim! Mas somente quando a voz é fresca no vagão. Meio tímida, envergonhada. Aquela vergonha de quem não queria estar ali fazendo aquilo. Este, diante dos demais, ensaiados, recitando dia após dia, a mesma ladainha cadenciada e ritmada, é o verdadeiro necessitado!
Mas há um caso individual que é digno de nota.
Presenciei a situação e fico só de olho quando a protagonista do golpe passa pelos corredores da linha Turquesa mendigando ajuda, depois daquele dia revelador.

É uma senhora, de voz metálica, que passa dizendo: "Meu senhor, minha senhora, dez centavos, cinco centavos, um passe, um vale transporte. Qualquer ajuda serve, meu senhor, minha senhora..."
É uma senhora que inspira compaixão pois está sempre com a mão estendida, fitando nos olhos de quem a olha. Detalhe: fita com um olho só. Ostenta no rosto a cavidade de um globo ocular vazio, aberta, exposta, causando piedade nos passageiros novatos.
Digo isso porque, há anos transitando pela Turquesa, certo dia presenciei uma discussão:

— A senhora não tem vergonha não? Ficar pedindo no trem?
— A senhora tem o que a ver com isso, hein? Eu peço porque preciso!
— Precisa nada. A senhora desce todos os dias na estação Mauá e vai pro Bingo! Canso de ver a senhora lá jogando!
— E daí? A senhora não vai também jogar? Não gosta de jogar? Eu também gosto! Não posso não? Só a senhora é que pode é? Se eu tivesse dinheiro pra ir jogar no Bingo, não tava aqui pedindo. Peço mesmo. Quem me dá, dá porque quer! Se me dão, o dinheiro é meu e eu faço o que quero com ele, a senhora não tem nada a ver com isso!
Depois de receber essa aula de sofisma, a interlocutora levantou e foi para a porta do vagão, indicando que desceria ali, indignada com a desfaçatez da pedinte.

Dado o sermão a senhora, de um olho só, chegando à estação Mauá, onde também desceria a outra senhora, sua interlocutora na discussão; guardou as moedas na bolsa. Em seguida enfiou a mão no bolso, sacou um objeto e encaixou na órbita vazia: um olho de vidro, tão azul quanto o olho normal com o qual fitava os passageiros ao pedir auxílio, confirmando a máxima que diz: Em terra de cego, quem tem um olho é rei, ou vai ao Bingo... ou à Roma, já não sei mais!



segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Dia 8 — Tiracolo

Diário da CPTM
365 dias de uma passageira
14/11/2016


Você conhece um novato no transporte coletivo pela forma como carrega a bolsa.
Disse isso um dia desses porque fui vitima de uma bolsada...
Eu, sentada no banco duplo, lateral ao corredor, com meu ombro à mercê de quem parasse ali ao lado...
Ao meu lado, em pé, para uma moça. Bem vestida, maquiada, penteada, arrumada de forma inusual para o transporte coletivo matutino.
O público madrugueiro normalmente usa roupas práticas, ostenta poucas, ou quase nenhuma joia, acaba de se arrumar no próprio trem. Os homens tomam o cafezinho em pé, demonstrando que saíram de casa às pressas quando o café ainda não estava pronto. O "buteco" da esquina os socorre diariamente e os copinhos descartáveis repousam no peitoril da janela após o desembarque, para desgosto das funcionárias da Faísca (empresa de limpeza que revisa os vagões no ponto final).
As mulheres fazem a maquiagem durante a viagem (habilidosamente seguram o espelho apoiado na palma da mão, fixado pelos dedos mínimo e anular, apoiados no polegar, e o rímel fica preso entre os dedos médio e indicador, como se fosse um cigarro. Com a outra mão pintam cuidadosa e "caprichadamente" os cílios, sem borrar nada, nadinha.... Manobra que exige anos de vagão e alguma habilidade).
Mas, a moça em pé ao meu lado estava pronta! E carregava uma maldita bolsa bege à tiracolo!
Aquela bolsa, já na chegada, ralou minha orelha esquerda. Permaneci sentada mas com o pescoço levemente deslocado para a direita, protegendo minha pobre, minúscula e bem desenhada orelhinha das investidas da bolsa bege.
Não adiantou. Alguns minutos depois a bolsa escorregou dos ombros da moça e sentou sobre meu ombro esquerdo ( meu lado esquerdo não tem tido muita sorte ultimamente...). O peso da bolsa sobre meus ombros foi desagradável, mas não foi traumático. O trauma veio quando a moça decidiu reconduzir a bolsa aos seus próprios ombros. Puxou a alça bruscamente e quase levou minha pobre orelhinha junto, porque a bolsa tinha uma lombada costurada que resolveu encaixar na minha orelha durante a subida....
Olhei feio para a moça que, de tão desajeitada me inspirou pena.
Ela realmente não era do ramo! Acho que estava estreando na CPTM.
Não sabia se segurava no balaústre, se se apoiava no cano vertical, se confiava nas leis da física e deixava inércia e gravidade manterem-na em pé.
Enfim... meu ombro e minha orelha, calejados por décadas de CPTM, estavam até que bem, diante do quadro vivido pela moça.
E a bolsa seguiu viagem encostada na minha orelha, apoiada sobre meu ombro, deixando minha cabeça levemente inclinada para a direita.
Eis que toca o celular. Bem no meu ouvido.
O celular, dentro do bolsinho externo da bolsa bege, de propriedade da novata na CPTM, resolveu tocar em volume máximo, bem dentro da minha pobre orelhinha esquerda, já martirizada, após 5 estações de negociações com a bolsa, com a moça e sua estreia na linha Turquesa.
— Alô! Oi, tudo bem? ..... Sim, no trem..... não sei quanto tempo... Na Estação Prefeito Celso Daniel.... No Brás.... Sim, no Brás.... Ah, não sei quanto tempo demora.... Poderia ser Tamanduateí, mas não sei fazer a baldeação, então vou pro Brás que a Meire me encontra lá..... Ah, tô nervosa, né?..... Ai, se eu passar vou ter que pegar esse maldito trem todos os dias..... Ah, fazer o que, né, agora fiquei sem grana!.... claro que é pouco, mas viver só da pensão não vai dar.... Depois te conto como foi a entrevista.... Beijo!
Não ouvi o que dizia o interlocutor(a), mas intuí todas as perguntas que foram feitas....
Recém-separada, com dificuldades financeiras, estava arrumada para a entrevista de emprego e já reclamava do trem. Não sabia quanto tempo demoraria a viagem, não sabia chegar no lugar da entrevista e, como minha orelha pôde bem confirmar, não sabia nem carregar uma bolsa à tiracolo!
Fala sério, lindeza!
Você, novata, esculachando logo de cara o "linguição-de-ferro" que me leva e me traz todos os dias, quase rasgando minha orelha, abusando da paciência dos meus ouvidos com seu celular estridente, ainda vem posar de dondoca depois da falência do casamento desfeito?
Ah, não! É demais!
Fui calada, suportando a bolsa bege sobre o ombro. Chegando no Brás pedi licença, me levantei, cedi o lugar como se estivesse fazendo uma grande gentileza e disse: CPTM é só para os fortes.
Ela sorriu e se sentou. Acomodou a bolsa bege no colo e desceu por último, pois não havia percebido que ali era o ponto final.
Foi avisada pela funcionária da Faísca...
CPTM, estamos vingadas!

Dia 7 — Dia vazio

Diário da CPTM
365 dias de uma passageira
13/11/2016


Dos sete dias da semana, há semanas em que nos vemos todos os dias.
Semanas em que não há um único dia vazio em nossas agenda de encontro.
É sempre a mesma rotina: Saio de casa, caminho solitária e determinadamente até ele.
Chego lá e, na maioria das vezes, ele ainda não chegou.
Chego sempre antes. Dou uma paradinha na chegada e, antes de entrar, converso com a Preta.
Para a Preta não há dias vazios, ela está sempre lá, na entrada, deitada no chão, encostada à muretinha de pedra.
Chego, cutuco a danada com a ponta dos sapatos e ela abre os olhos. Eu, com voz caricata e infantilizada, digo: Cadê a barriga?
Ela imediatamente se vira, mostra a pança e recebe aquela coçadinha...
Não sei quantas pessoas fazem isso no decorrer do dia, mas ela adora quando eu chego.


Mas não fico ali muito tempo. Meu encontro não é com ela. Apesar do rabo abanando, festivo e agradecido pela cutucada que a despertou, chega o momento de nos despedirmos, no exato instante em que anunciam a chegada dele, com o toque da campainha.
Raros são os dias em que nós duas não nos cumprimentamos! Procuro sempre por ela...
Isso só não acontece quando me atraso e ele ja está lá à minha espera. Invariavelmente corro... quando chegamos juntos, aperto o passo para não fazê-lo esperar.
Ele não me espera. NUNCA. Me deixa pra trás, sem remorsos nem piedade.
Me quer sempre à espera e, se a rotina muda, estraga meu dia, sem querer saber o que me fez retardar minha chegada.
Ele, quando se atrasa, estraga meu dia em dobro! Me deixa sentada, inquieta, esperando impaciente, olhando o relógio seguidamente, sem compreender o porquê da demora.
E não há explicação alguma. Nunca há!
Ele, impiedoso, chega. Se eu estiver ali, me leva com ele. Se não estiver, azar o meu. Vai sem mim, sem levar em consideração a minha fidelidade canina. Quase tão canina quanto a alegria da Preta depois da coçadinha na barriga.
É uma história antiga, de laços duradouros.
Mas ele não espera por mim, nunca.
As semanas passam e sempre espero pelo dia em que não precise ir ao encontro dele.
Hoje meu sonho se realizou.
Trem de ferro, hoje não vou!...

Dia 6 — Os dias não são sempre iguais

Diário da CPTM
365 dias de uma passageira.
12/11/2016

Chinelo de dedos nos pés.
Não, não estou dirigindo. Hoje estou de passageira.
Todos os dias sou passageira, é verdade, como passageiros são eles também, os dias...
Todos os dias acordo cedo, rotina comum.
Incomuns são os dias.
Todos os dias tem alguma surpresa: um cargueiro na frente, um raio no transformador de energia, um objeto na via, uma árvore caída após um temporal. Vida de passageiro não é mole não!
São tantas emoções que descrever uma a uma é praticamente impossível.
Mas a emoção de estar com um chinelo de dedos nos pés, esta precisa ser descrita:
Experimente. Uma vez na vida, que seja...
O pé respira. Os dedos olham pra você e veem o mundo por você, de um ângulo que você jamais verá. E mais...veem o mundo pelo tato.
Em dias chuvosos, como hoje, veem o mundo molhado.
Os dias de sol são uma consagração. Meus pés, como eu, veem o mundo colorido, sequinho e esvoaçante.
Um pé que se preze, como o meu, não merece sofrer as dores do mundo. Carregar tudo sobre eles já é demais.
Por isso, as vezes, eles tiram folga e caminham livres, amparados por um par de chinelos de dedo.
Ir para o trabalho de chinelos de dedos nos pés, mesmo num dia chuvoso, é a glória.
Este dia é hoje!
Tome, CPTM, hoje é um dia diferente.
Meus pés não vão até você.
Hoje sou passageira sobre rodas de borracha.
Azar o seu! Não vai ver ninguém pisando no meu pé na hora do desembarque.

Dia 5 — Efeito estufa

Diário da CPTM
365 dias de uma passageira
11/11/2016

Não há nada melhor do que um dia de calor. Aliás, há sim... trem com ar condicionado!
É básico!
E acho mais... lembro-me dos trens que tinham uma veneziana... era uma segunda janela, sobreposta à de vidro, que se podia subir e descer conforme aumentava a incidência do sol. Era toda furadinha. Quebrava o Sol e salvava o vento. Uma perfeição da tecnologia!
Mas agora os trens não tem mais janela. Tem só o vidro. Mas tem ar condicionado... só que o danado quebra... e é sempre no calor. No frio é infalível: funciona sempre! Gela que é uma beleza.
O vento não quebra nunca. Abrindo a janela, o trem em movimento, o vento venta....
Básico!
Mas fecharam as janelas. Ok! tem o ar condicionado. Mas ar em movimento é outra coisa... não existe quase nada igual!
Melhor do que vento, só chegar em casa, depois de vir sentada em um trem sem ar, do lado da janela em que está batendo o sol... manja, uma estufa? Hoje me senti uma orquídea.
- Muito prazer! Meu nome é Ascatléa! (Clatteya para os íntimos....)
Vida sofrida, essa vida de orquídea de trem....
  Poderíamos pensar em um toldo, talvez, pra diminuir a incidência dos raios solares sobre os passageiros, mas sem o vento não faria o menor sentido...
Vento é tudo.
Só não é melhor do que chegar em casa.
Aqui venta, ventinho manso.... tem sombra e janelas abertas.
Sai CPTM. Agora, só te vejo amanhã!

Dia 4 — Eti.quieta...

Diário da CPTM
365 Dias de uma passageira.
10/11/2016

Minha crônica diária do transporte coletivo aborda a etiqueta comportamental.
Hoje me deparei com um dilema: como romper a etiqueta que prevê o respeito à viagem tranquila de todos, evitando o barulho excessivo, celulares com som alto, conversas transversais desconsiderando a escuta de quem não faz parte da conversa? Enfim, situações que envolvam a administração razoável dos silêncios e dos sons... concordo que nada deve ser motivo para que nos incomodemos mutuamente dentro do transporte coletivo.
Concordo racional e conscientemente.
Mas hoje, meu irracional inconsciente me venceu.
De repente cai nas minhas mãos uma piada infame, politicamente incorreta, mas que me provoca uma gargalhada compulsiva e incontrolável de alguns minutos...
Com os olhos escorrendo, estômago doendo, uma vergonha ancestral na cara, já que todos me olhavam com olhares inquisidores, desembarquei no Tamanduateí, tentando, mais uma vez, pelo terceiro dia consecutivo, chegar no horário ao trabalho, driblando as mazelas do transporte coletivo.
Mas, só de raiva, mandei a etiqueta as favas e desci rindo. Alto e aos solavancos.
Desço correndo, mas me recuso a descer quieta! E gargalho mesmo....
- Bom dia CPTM. Você não vai me vencer! Pelo menos não hoje!
Até amanhã. ...

Dia 3 — Se vira!

Diário da CPTM
365 Dias de uma passageira
09/11/2016
 
Registro aqui a esquizofrenia política do transporte coletivo.
A mesma galera que pediu fora Dilma, comemorou a ascensão de Temer, tá descendo a ripa no Doria e no Trump.
A mesma galera que diz que bandido bom é bandido morto, tá deitando a língua na Polícia que tá matando demais.
A mesma galera que mete o pau na polícia que mata demais, tá discursando euforicamente em favor das chacinas que dizimam jovens diariamente nas periferias: quem manda andar mal acompanhado?....
A mesma galera que é a favor dos homicídios contra jovens "mal acompanhados" tá se acabando de revolta contra o Trump que é a favor da indústria armamentista.
E o pior, não se dão conta de que, em relação aos EUA, o Brasil é a periferia mal acompanhada, residente no Quintal do condomínio do Tio Sam.
E o Trump é o síndico do condomínio e o Temer é o o guarda da guarita que separa os dois territórios.
Transporte coletivo é a salvação da humanidade. Aprendizado psicanalítico. Só não vê quem não quer. Quanto a mim, vejo mais do que gostaria: sou sagitariana, entrei no inferno astral, mas sigo otimista. E vou descer agora porque cheguei no Brás!
Se vira, mundo...

Dia 2 — CPTM redentora

Diário da CPTM
365 Dias de uma passageira
08/11/2016

Meu dia hoje foi Suuuuper bom!
Começou com o metrô sem luz e parado por interferência de objeto na Via... Cheguei atrasada no trabalho. Seria um pressagio?
Depois fui almoçar com três amigas pra dizer a elas que as coloquei numa fria na qual não quero mais ficar.... decepção grupal. Inclusive minha comigo...
Depois fui agilizar documentos importantes pra serem entregues hoje.... tudo demorou tanto que cheguei pra entregar e o escritório já estava fechado.
Passei o dia digerindo a informação recebida ontem por um médico que me aprisionou na definição de menopausa.
Depois, encarei a sucursal do inferno, onde? No metrô. ...
Voltando pra casa, hoje, interferência na via, fechamento da Linha vermelha, caos nas catracas da estação República do metro, pisoteamento na estação da Luz.... por que? Acabou a Luz!
Mas o dia terminou, surpreendentemente num trem vazio.... o povo não conseguiu chegar no Brás antes de mim e vim sentada!
Affff. Sou uma pessoa de sorte!

Dia 1 — Exame Periódico

Diário da CPTM
365 dias de uma passageira.
07/11/2016


Um monte de coisas pra resolver...
Levanto cedo e rumo para o escritório. Não, não é um escritório formal. e
É improvisado. Minha bolsa sobre o colo é a escrivaninha. Meu tablet é o processador de informações e registros. O vagão de trem é a sede de onde organizo a vida que acontecerá nas horas seguintes do dia.
A organização dura o tempo da viagem entre Ribeirão Pires e o Brás.
Começa o corre corre....
Ensaio, almoço, organização de documentos.
Entre um documento e outro, vou fazer cópias urgentes que preciso pra ontem.
40 minutos até as impressões coloridas ficarem prontas.
Enquanto isso, fui fazer o exame de saúde periódico.
O médico preencheu todas as perguntas do formulário com uma rapidez notável. Mesmo antes de me examinar.
Ao final, depois de me declarar apta, aferiu minha pressão e sentenciou: a senhora está na menopausa. Eu disse.... ainda não.
Ele reafirmou. Está sim: sente calores, formigamentos, ansiedade, depressão. Esses são os sintomas de menopausa. Se a senhora menstrua ou não, não quer dizer que não esteja...
A menopausa começam aos 45 e termina aos 55. Então na senhora está sim na menopausa.
Vou discutir com o médico?
Saí de lá deprimida, formigando, ansiosa, sem menstruar...
Meu hormônios permaneceram calados, apesar dos índices absolutamente compatíveis com idade fértil.
Mas, se isso não quer dizer nada, vamos lá, encarar os sintomas.
Só quero mesmo é saber o que vai me acontecer depois dos 55....
Engraçada foi a despedida:

- Muito bem, minha jovem, vá em paz, seja feliz e que Deus lhe acompanhe.

Depois de tantas sentenças, espero que essa despedida seja um bom alvitre...
- Obrigada! Tudo de bom pro senhor também!

Na volta, no trem, digerindo tantas novidades sobre mim, observei quantas mulheres no vagão encontram-se na faixa dos 45 aos 55 anos. Somos muitas. Por isso não achei prudente revelar a elas as boas novas...
Desço do trem ainda experimentando o meu novo estado físico "menopausal".
Calma CPTM, ainda não vou reivindicar meu assento preferencial....

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Eu, Baiana.


Carnaval aqui em casa é um período do ano sagrado!
Mas, a magia que arrebatou meu marido desde sua adolescência, confesso, tinha um encantamento que me escapava...
Tinha um lirismo que eu não alcançava, nem em dimensão nem em profundidade.
Sempre houve em mim um secreto desconhecimento envergonhado... Me era impossível compreender a grandeza dessa paixão que começava a fervilhar com a chegada da primavera e que o arrebatava gradativamente até explodir na sexta-feira de Carnaval.
Nesse período a casa fica preenchida pelo som dos sambas enredo, acompanhados pelos batuques no tamborim, pelo ronco da cuíca, pela marcação precisa do surdo de primeira... Douglas cria uma bateria imaginária unindo seu batuque ao som que vem das caixas acústicas.
Nesses momentos de ritmista, ele recupera suas memórias afetivas. Alimenta-se das lembranças de um carnaval que hoje quase se perde no folclore do samba e nos (des)caminhos que o samba percorre.
Ouvindo gravações antológicas, de diversos carnavais memoráveis, ele novamente se perfila em uma bateria, formada por ritmistas imaginários que animam com seu batuque um renovado coração de carnaval.

Essa magia era, até poucos meses, somente dele, e eu o acompanhava apenas como espectadora.
Agora vou junto, e me vejo encantada também!
Vivo um encantamento tardio, nascido do meu encontro imprevisto com a Ala das Baianas da Escola de Samba Águia de Ouro, orgulho da Pompéia, bairro da Zona Oeste de São Paulo.

A distância cronológica deste encantamento hoje se desfaz e nos encontramos na mesma paixão. Uma paixão que somente agora consigo compreender...

Ao entrar na Águia de Ouro me surpreendi, tamanha grandeza daquele espaço!
Depois de alguns ensaios, me enchi de coragem e abordei a  Diretora da Ala das Baianas, Adriana.
Desci do camarote, onde assistia o ensaio, e pedi a ela que me deixasse integrar a ala. Afinal, meus domingos estavam sacramentados: Eu ficaria sozinha em casa, todos os domingos, durante os seis meses restantes até o carnaval (Douglas - sendo um dos compositores do samba enredo de 2016 - frequentaria a escola semanalmente) ou iria junto, participando dos ensaios...
E ingressar na Ala das Baianas foi, tem sido e será, sempre, uma experiência transformadora para mim!
Entre aquelas mulheres enfrentei um rito de passagem... e saio fortalecida! Não me sinto mais uma novata! Estou incluída, fui acolhida e aceita. Tenho agora um grupo pra chamar de meu. Tenho a minha Ala! Me tornei "Baiana".

Ritos de passagem, geralmente, são enfrentados com a faca entre os dentes. Saímos feridos. Às vezes agonizantes. Alguns de nós inclusive saem mortos, mesmo sem perceber....
Mas na escola de samba o rito é outro. Simplesmente acontece, de forma contínua e suave, como uma sedução que te molda, te transforma e você nem se dá conta. NÃO DÓI, mas tem começo meio e fim. Te livra da pele velha e te dá asas....
Lá, entre elas, sem que elas saibam, aprendi a por em prática fundamentos de convivência que nenhum líder, de nenhuma das instituição pelas quais passei, até há poucos meses, havia conseguido me ensinar.
Entre as Baianas, aprendi a me subordinar sem questionar. E me subordinei a uma hierarquia exercida sem uso de poder. Apenas com afeto, reconhecimento e acolhimento. Subordinei-me a mulheres que não me conhecem.  Apenas convivem comigo por poucas horas, dividindo, lado a lado, o giro da saia.
Entre minhas parceiras de Ala encontram-se mães como a minha mãe! Muitas já avós... Eu, filha de uma longa descendência de serviçais domésticas, a despeito da minha formação, me posiciono ao lado de merendeiras, enfermeiras, donas-de-casa, diaristas, cozinheiras, apreendendo delas toda a aura de conhecimento inerente à vivência que carregam consigo. Elas nem sabem disso, mas de tudo aprendo um pouco. Do giro, do gesto, das falas, dos olhares e dos silêncios. São mulheres negras, brancas e japonesas. De cabelos de todas as cores e texturas. O credo de cada uma sequer é assunto nas rodas onde se dividem o bolo, o guaraná e os salgadinhos trazidos de casa para partilhar com as companheiras. Da Van que faz o transporte até a quadra, muitas vezes descem corpos cansados do dia que passou. Chegam em busca do descanso somente desfrutado sob peso da saia amarrada à cintura. São todas mulheres dignas e mestras, cuja integridade me contaminou de subordinação até meus últimos fios de cabelo.
Elas não sabem, mas me puseram na linha! Me orientaram de forma cartesiana. Com elas aprendi a ser, ao mesmo tempo, vértice e vetor!
Me alinhei a elas lateralmente, de forma horizontal, parada e em movimento. Seguindo em frente ou estacionada. Girando sobre o próprio eixo ou em deslocamento. Giramos olhando discretamente onde estão nossas parceiras, porque o espaço de cada uma precisa - e deve - ser respeitado, protegido, conservado, defendido.   
Mas, por conta desse ingresso na Ala das Baianas, aprendi mais! Além de aprender sobre mim, aprendi sobre os outros, sobre o mundo, sobre utopia real e aplicável, sobre a morte do ideal, inatingível, e o nascimento do real, prazeroso e produtivo. Sobre como é difícil viver num mundo de conformismo sabendo que é possível existir um mundo de satisfação, PARA TODOS!
A Águia de Ouro, pelas mãos de seu Presidente, que com pulso firme  imprime  à escola um perfil familiar, funciona como uma grande comunidade acolhedora.
Ele é um líder que não busca NENHUM favorecimento pessoal. Conduz seus comandados norteado-os apenas pelo respeito. Conduta que há muito eu não via ser aplicada com tanta maestria. Sem lisonjas, sem falsas promessas, sem acenos de realizações improváveis. Lida apenas com o possível. E esse possível é  imenso e é para todos! Leva todos consigo, lado a lado, dividindo os méritos e distribuindo os louros, em igual proporção, acolhendo a todos com reconhecimento, mesmo que esta conduta se esconda sob uma capa de frieza e distanciamento.
Sidinei, o Presidente, se coloca dentro da estrutura de forma camuflada. Está sempre fugindo dos holofotes. Mas ninguém ali tem dúvidas de sua autoridade.  

No meu primeiro dia de ensaio na Ala das Baianas cheguei mais cedo, coloquei minha bolsa sobre a mesa e fui aprender a coreografia da ala com Adriana. Cerca de uma hora depois começava o jantar, uma hora antes do ensaio da escola. Da cozinha saíram os caldeirões. Do barracão vieram os mecânicos, escultores, soldadores. Do ateliê vieram os aderecistas. Sentaram-se todos à mesa e, de forma fraterna, jantaram. Poucos minutos depois começava o movimento para o ensaio da escola. Chegaram as passistas, as porta-bandeiras, os mestres-salas, os ritmistas, os diretores de harmonia. Formaram-se as alas, perfilou-se a bateria, que já ensaiava em naipes do lado de fora da quadra. Começaram os primeiros acordes. Como por mágica a mesa do jantar se desfez e deu lugar aos componentes da escola, que se ORGANIzaram de forma ORGÂNIca, como deveria ser toda e qualquer ORGANização! Quando eu percebi, já girava em torno da quadra, buscando uma sintonia com a Ala que acabara de me acolher.
Ao final do ensaio encontrei minha bolsa, exatamente onde eu havia deixado, numa clara demonstração de que lá, na Águia de Ouro, a convivência respeitosa e igualitária prescinde de olhares vigilantes. Como deveria acontecer em todos os lugares!
E assim foi em todos os ensaios seguintes. E esta situação, aos poucos, tornou-se corriqueira para mim, dentro da rotina de ensaios. Assim como se formava a mesa para o jantar, assim como acontecia a confraternização em torno da mesa, assim como surgia magicamente a divisão da quadra, espontânea e tácita, da mesma forma desapareceria a mesa de jantar, dando espaço aos sons que surgiam, gradativamente, assim como se iniciava o giro em torno da quadra. É com essa naturalidade que tudo acontece por lá, durante meses, alimentando a quadra de vida e criação!

Além disso, ainda tem o Guilherme!  Ele chega aos ensaios conosco e desce do carro, indo rapidamente ao encontro dos recém formados amigos de infância, com os quais brinca, corre e vai aprendendo a se relacionar, num núcleo social de acolhimento. Só dá as caras quando aperta a fome, ou a sede... e vem com os amiguinhos no seu encalço....
Uma delícia esquecer dele naquela multidão e saber que ele, mesmo longe dos nossos olhos, está próximo, acolhido e preservado. Assim como os movimentos orgânicos da quadra, vai também organizando suas visões de mundo, de parceria, de convivência.


Por conta da minha presença na Ala, fui parar no Ateliê de adereços e fantasias.Um dia me vi montando cabeças de fantasia, entre desconhecidos. Artistas vindos do Norte do país, trazendo sua expertise. Uma mão de obra que o "mercado de artes cênicas profissional" sudestino dificilmente absorveria. Seja porque não possuem uma certificação formal, seja porque compõem um grupo que sofre exclusão, movida  pelo preconceito de gênero, de cor, social de todas as matizes.

Mas o carnaval os acolhe. A Águia de Ouro os emprega e lá, nessa comunidade, convivemos sem que as diferenças nos isolem ou nos separem.



Fomos parceiros de cola de sapateiro, de ferro de solda, de saias de fantasia. E foi uma delícia. E eu aprendi, novamente, a me subordinar de forma feliz, sem me importar em que posição cada um de nós se encontrava. Apenas vi que o esforço conjunto é, de fato, para o bem comum. E o bem comum vem, mesmo antes do dia do desfile. Vem com a sensação de pertencimento!
Somente isso, para mim, já destruiria o discurso, tolo e egoísta, daqueles que se voltam contra a existência de verbas públicas alimentando a indústria do Carnaval.
Tolice!
O Carnaval não é uma indústria. Pelo menos na Águia de Ouro não! E nisso, me parece, a Águia voa no contrafluxo de suas "coirmãs".
Lá o Carnaval é uma Escola!
Nessa escola o reconhecimento é certo. Essa certeza entra com a escola na avenida e carrega o samba da concentração à dispersão, num pulso que não é somente metronômico. É passional. É arrebatado. É encantado.
Quando a Águia entra na avenida, todos são donos da escola!

Nessa escola, como Baiana, descobri o que é carregar um símbolo sobre o meu próprio corpo e assumi o papel que vem acoplado a esse símbolo! Aceitei desempenhar esse papel, com todo o prazer do mundo, pois sei que aprendo muito quando visto aquela roupa. Sei mais: sei que esse aprendizado fica, não somente em mim. Nesse aprendizado eu sou agente, sou veículo, mas sou também a aprendiz.
Apenas usando a vestimenta de Baiana me vi sendo merecedora do mais absoluto respeito dentro da Escola. Respeito e reverência jamais experimentados por mim em toda minha vida, nem mesmo depois de lutas empreendidas em família, no trabalho ou na sociedade.
A convivência dentro de uma Escola de Samba que preza suas raízes nos ensina a reverenciar os símbolos, sejam eles a saia de Baiana, o pavilhão da escola ou o apito do mestre de bateria. Na escola de samba aprendemos, de forma tácita, a cultivar as memórias ancestrais e a nos curvar diante da sabedoria, de forma afetuosa e generosa.
Conheci a autoridade sem o desnecessário exercício de poder, sem uso da força, sem intimidações ou da ameaças.
Na Águia de Ouro aprendi que os símbolos carregam consigo todos os valores que formam a identidade de um grupo étnico, cultural ou social. Aprendi isso na prática, sem discursos vazios ou demagógicos, apenas observando o exemplo dos mais antigos!
Esse aprendizado aliviou o peso da minha descrença na sociedade e em sua organização atual, incapaz de transmitir tais valores aos jovens aprendizes de vida.
Na Águia de Ouro aprendi que a utopia da convivência igualitária e inclusiva não pode ser apenas um discurso. Ela precisa existir para nos conduzir ao convívio social menos cruel. Aprendi que a utopia não deve servir apenas para nos fazer caminhar. Ela pode se tornar real, sólida, consolidada. Pode nos alimentar, nos proteger. Nos premiar com prazer e satisfação.
Essa é a magia que seduziu meu marido em sua adolescência e que me escapava.
Essa magia agora cura meu azedume e me faz absolver meus desafetos. Clareia minha visão e me alivia! Me alegra. Me diverte. Me distrai. Me ensina, me inclui, me faz útil e reconhecida. Me absolve também, de meus próprios julgamentos e das penas, todas imaginárias que, porventura, me sejam imputadas.
Aprendi tudo isso integrando a Ala das Baianas da Escola de Samba Águia de Ouro.
Com elas comungo o giro da minha saia e me sinto feliz.

Entro com minhas parceiras na Avenida na próxima 6ª feira e tenho certeza que saio vitoriosa!
Agora, bêbada desse encantamento, sei que, finalmente, me encontrei com o Carnaval.
A Águia de Ouro é uma escola onde todos deveriam ir, pelo menos uma vez, pra conhecer, em parte, essa atmosfera que tento descrever. Fracasso na minha descrição, porque, de fato, é tudo muito maior! Lá somos mestres e aprendizes, todos, sem diferenciação.
O Carnaval é efêmero. Acaba já, já...
Mas a magia fica.
O ensinamento permanece e já, já, começa tudo outra vez.....
Por isso decidi: de hoje em diante voltarei à Águia de Ouro anualmente, para renovar meu aprendizado e para desfrutar com elas, a minhas Baianas, desse bálsamo que é o Carnaval.
Agradeço a todos pelo acolhimento, pelos ensinamentos e pelo caminho, que caminhamos juntos.
Nos vemos na avenida, e lá também nos despedimos, até o próximo reinado de Momo, mas levarei vocês comigo, pra sempre!
Muito obrigada.