quinta-feira, 14 de julho de 2022


Neste interminável mês de julho, desse ano macabro de 2022, nós, mulheres, e sociedade sensível que, acredito, ainda existe, nos vimos diante de quadros de barbárie.

Questões envolvendo a infância roubada, por uma maternidade precoce, fruto de um ato sexual irrefletido, entre duas crianças (prefiro chamar assim… mesmo que, aos olhos da lei, a classificação técnica seja estupro) Vimos uma criança, desrespeitada pelas instituições, que deveriam protege-la e ampará-la, aos olhos da lei que oferece respaldo a essa proteção.

Questões envolvendo invasão de privacidade, onde vimos o submundo da imprensa sensacionalista que se alimenta dos mexericos da vida privada de celebridades, expondo detalhes de decisões íntimas de terceiros, respaldadas pela lei, como se fossem atos passíveis de julgamento moral e condenação.

Talvez já fosse suficiente, mas tivemos um gran finale desse espetáculo horrendo de violações: o episódio do monstro-anestesista, que findou com uma prisão, em flagrante, por um ato criminoso que não precisa, novamente, ser relatado aqui.

Semanas de horror, mulherada. Semanas de horror!

Mas, quando é que foi diferente?

Quando?

Sempre foi assim! E não somente no Brasil, nem somente agora. Esse não é um mal da modernidade.

Mas parece que o horror era menor, não parece?

Sim, porque a dor não nasce com o fato. Nasce com a ciência dele. Quanto mais temos conhecimento do horror, mais ele dói!

Fato: Estamos doloridas como nunca! Mas, agora, em voz alta, porque nunca, antes dos avanços tecnológicos dos meios de comunicação de massa, tivemos tantas informações sobre o horror que não enxergávamos cotidianamente, em todos os âmbitos.

Viver, nesse mundo de horrores, tendo ciência deles, é muito difícil!

Aviso aos homens: ser mulher não é fácil. Acredito que não seja fácil ser homem também. Viver é difícil. Mas nós, mulheres, via de regra, conduzimos nossas possibilidades de vida pelo viés da escuta e conciliação. Os homens, também via de regra, conduzem pelo viés da urgência e da força.

Natural que essa diferença crie uma prevalência masculina sobre as mulheres. Isso, por si só, já gera uma supremacia, que precisamos superar, porque não somos irracionais! Essa polaridade macho/fêmea não cai bem entre seres pensantes, penso eu...

As mulheres têm lutado com as armas que possuem: com palavras de ordem,

redes de apoio, grupos de estudos, núcleos de sustentação social, terapia, qualificação, pesquisa, meditação, autocuidado, autoajuda, auto-observação, reposição hormonal, musculação, análise, denúncias, reação, mudanças de paradigmas, indignação, fortalecimento.

Nossa, como cansa!

Não sei como andam as coisas pelo mundo mas eu sigo exausta: de observar, de pensar, de esperar, de questionar, de insistir, de perder. Perco diariamente batalhas que, inclusive, desconheço. E quando as conheço a derrota se torna ainda maior.

Lutamos contra inúmeros inimigos sociais, históricos, biológicos, econômicos, financeiros.

Seria bom se não precisássemos lutar também contra os homens, e torná-los como nossos inimigos. Seria bom se os tivéssemos ao nosso lado, nessa batalha contra a desigualdade.

Muitas vezes, o necessário para a mudança de comportamento, visões de mundo e paradigmas masculinos, na sociedade atual, se resume a três pequenos gestos:

- permitam-se escutar

- não reajam àquilo que foi escutado

- reflitam acerca do que escutaram.

Nós, mulheres, aprendemos ancestralmente a escutar. Ancestralmente tivemos a voz roubada, silenciada e, na modernidade atual, vemos nossas vozes, que começam a ecoar, serem desqualificadas.

Eu pergunto: para onde está direcionada a inteligência dos bons homens (não estou falando dos “homens de bem”) que não ouvem esse silenciamento?

Talvez esteja direcionada para o temor da perda iminente de sua supremacia, caso as mulheres, além de tomarem gosto pela fala, comecem a se ouvir, serem ouvidas e, acima de tudo, se fazer escutar.

Sinto muito rapazes, nossas vozes estão dentro de seus ouvidos, desde antes do nascimento. Nada as silenciará de fato. E mesmo que não haja no planeta mais nenhuma mulher falante, mesmo assim seguiremos sendo ouvidas, pela saudade que a ausência da nossa fala promoverá, pelas memórias passivas que insistirem em vir à tona, pelos vazios que se formarão à partir desse silêncio. Essa é a bruxaria pela qual tantas de nós foram queimadas na Idade Média e tantas de nós, desde a infância, seguem sendo violadas das mais diversas formas. Tudo em nome de um silêncio produzido à força.

Essa “força” que nos silencia tem-nos transformado em seres armados. Não queremos mais esse silêncio. Estamos prontas a reagir, diante de qualquer circunstância.

É obrigação moral e histórica dos homens contemporâneos, mais inteligentes e humanos, promover nosso desarmamento pacífico. É assim que precisamos de vocês nessa luta. Criem condições para que não precisemos nos armar.

Este é um pacto urgente e necessário!

E nós, mulheres, considero urgente que não embarquemos nas armadilhas que a Guerra espalha pelos campos minados pelos quais caminhamos.

Estas últimas semanas tem sido duras. E essa dureza tem feito de nós seres guiados pela indignação. Uma indignação que, muitas vezes, pode nos fazer pecar pelo excesso.

Pelo excesso de dor, de pressa, de dúvidas, de medos e, por que não, de raiva! Sim, muita raiva! Negar isso é negar o tamanho do problema. Ela existe, mas não pode ser nosso guia.

Um desses excessos me causou incômodo e me moveu a escrever este texto - que ainda não sei se me servirá apenas como exercício íntimo de reflexão ou se será publicado de alguma forma.

Vimos por todos os meios de comunicação, a voz de prisão dada ao monstro-anestesista esta semana. Preso por uma mulher que cumpriu sua função, aos meus olhos, de forma exemplar.

Essa voz de prisão suscitou uma série de videos-reels, ironizando, satirizando e criticando a polidez da delegada em oposição à truculência exercida em outras situações, onde abordagens policiais inaceitáveis foram apresentadas como contraponto.

Tudo para justificar a tese: médico, branco é tratado com educação. Pobre negro é tratado como violência

Uma tese sofista, baseada em paradigmas inadequados, aos meus olhos… E posso estar errada. Mas deixem para deduzir isso após compreenderem minha argumentação. Uma argumentação que poderemos transferir para vários outros âmbitos, nos quais tomamos partido movidos por paradigmas equivocados.

Vamos lá:

Sim, o médico branco recebeu voz de prisão numa abordagem polida e educada.

Sim, os pobres não brancos (negros, indígenas, dependentes químicos, moradores em situação de rua, etc…) são abordados deforma inaceitável, truculenta e violenta.

E a verdade se encerra aí. Passamos a alimentar um sofisma quando duas verdades absolutas como essas são colocadas em campos opostos, para que uma desqualifique a outra, desconsiderando-se o contexto.

A delegada fez o correto. Como autoridade, sua abordagem DEVE ser solene, respeitosa, educada, polida, coerente com o cargo que ela ocupa. Deve inspirar respeito e distanciamento hierárquico e, sobretudo, segurança. Estamos em tempos em que a civilização tem por obrigação garantir que a justiça se cumpra à luz da lei. E a lei prescinde de grosserias, abuso de autoridade, violência. A lei, por si só, deve bastar. E cabe à nós esperar essa polidez das garantias legais, sem nenhum tipo de desqualificação que compare situações circunscritas em contextos diferentes. A justiça deve andar de mãos dadas com a polidez, que sequer é uma virtude. Todos deveríamos ser polidos, sem que isso fosse considerado uma qualidade. Não há nenhum mérito em praticar a polidez. É um dever institucional da vida em sociedade. Até os canalhas deveriam ser polidos. Quanto mais as autoridades!

Portanto, por analogia, ser polida, como foi a delegada, ao prender o monstro-anestesista, não pode ser um demérito nem deve receber críticas, tendo como polo de comparação e oposição o tratamento inaceitável dado aos não brancos, em geral. Porque não somente os negros, mas todos NÃO BRANCOS são vítimas de condutas reprováveis de autoridades, que devem sim, essas sim, ser condenadas.

É desleal conosco, como sociedade, utilizar uma conduta correta como objeto de um humor destrutivo, num âmbito de comparação com uma postura inaceitável.

Aquilo que é inaceitável não pode, numa sociedade racional e equilibrada, servir para desqualificar o que está correto.

Depois de ironizar a postura correta, desqualificando-a, utilizando-a como contraponto para revelar aquilo que está errado, como conseguiremos, depois, exigir o correto: polidez, gentileza, educação de uma figura de autoridade, se nós mesmos desqualificamos esse gesto quando ele aconteceu?

As abordagens feitas a não brancos, via de regra pobres, periféricos, desfavorecidos socialmente, são absolutamente inaceitáveis, por serem condenáveis socialmente, por denotarem falta de condições para um convívio coletivo e por não terem amparo na lei. Uma autoridade que abusa de seu poder está contra a lei. PONTO! Não podemos nos distanciar dessa visão e transformar isso num objeto de deboche, ironia e escárnio. Isso não nos vinga, não nos redime e não nos fortalece. Somente adia o momento de juntarmos forças para agir de forma coesa contra essa realidade vergonhosa que ainda nos ronda. Gestos inaceitáveis, não necessitam de nenhum tipo de comparação que os desqualifique. São INACEITÁVEIS por si só, por serem desrespeitosos, desumanos, arbitrários, vis. Por utilizarem de artifícios condenáveis, como abuso de poder, ameaça, violência institucional.

Ao comparar abordagens realizadas em contextos diferentes, como se estivessem em condições equiparáveis, desqualificamos o que está correto, e não corrigimos o que está errado. Criamos uma falsa sensação de justiça, produzida por injustiça de julgamento.

Essa é uma armadilha que tem nos prendido frequentemente, porque o efeito manada condena aqueles que ousam apresentar um ponto de vista diferente, por medo do apedrejamento das redes. As redes nos transformaram em seres surdos e incapazes de construir uma argumentação racional. é tudo tão rápido que um absurdo toma ares de verdade viral em segundos. à partir disso, nenhuma palavra mais terá eco.

As redes tem-nos trazido proximidade, conexão e um senso de globalidade. Mas tem-nos trazido também um maldito fenômeno da notoriedade instantânea, onde um a piada qualquer ganha eco e força de verdade, se propaga e gera consequências irrefletidas. Nada mais colegial!

Além disso, a notoriedade instantânea, inflada pelo desejo justo de justiça que predomina na sociedade sã, gera um sem número de imbecis vomitando julgamentos sustentados por premissas falsas e produzindo conteúdos, nem sempre bons, nem sempre importantes, nem sempre verdadeiros, que lhes garantirá engajamento que pagará suas contas no final do mês, através de parcerias pagas, divulgação, marketing indireto. É isso que move os conteúdos que viralizam. Não se iludam! Influencers não são os donos da verdade. Aliás, muitas vezes, estão bem distantes dela!

Cuidado com os notórios imbecis. Não serão eles os responsáveis pelas mudanças que a sociedade necessita, porque são fruto das distorções que essa mesma sociedade adoentada promove!

Eu, hoje, resolvi sair do meu silêncio auto-imposto para vir aqui pedir...

Vim pedir aos homens que escutem mais e não reajam à escuta de forma habitual. Esperem! Reflitam sobre o que escutaram e permitam-se assimilar olhares diferentes. Tudo isso antes de recrutar qualquer uso de força, contra quem quer que seja. Facilitará muito nosso processo de pacificação!

Peço também que deem fim ao corporativismo do clube do bolinha, onde o silêncio acerca das infrações de outros homens acabam por blindar horrores como os que presenciamos essa semana, promovido por esse monstro-anestesista. Esse corporativismo não tem graça!

Não à toa tantos homens temem ter filhas mulheres! Porque bem sabem os mistérios que rondam o universo masculino e sabem também do que os homens são capazes, tanto por ação quanto por omissão. Peço que não se omitam!

Vim pedir às mulheres que, dentro do processo de fortalecimento necessário e urgente, não coloquemos os homens como nossos inimigos só por serem homens…

Sim, é sempre um homem, mas, não... Não é todo homem!

Sim, existem homens e HOMENS.

Escolhamos os HOMENS como aliados contra esses minúsculos que insistem em desqualificar a desinência masculina.

Sim, a delegada foi exemplar ao prender o monstro-anestesista de forma polida, educada, serena, clara e digna. Para mim a polidez dela diante daquele monstro expôs ainda mais o submundo moral desse monstro-anestesista pelo contraponto que gerou. Esse foi o estranhamento: como, uma mulher, num posto de autoridade, diante de um monstro como aquele, conseguiu permanecer serena, educada, polida, se, no mundo, por muito menos, a violência transborda contra os mais fracos?

Respondo: porque a força dela está no exercício da gentileza. Isso é o que devemos exigir de todas as autoridades: GENTILEZA, mesmo diante do horror.

Comparar a delegada aos arbítrios de policiais violentos é injusto e nos enfraquece como mulheres diante de um gesto absolutamente feminino, que deveria ser enaltecido: ser forte e corajosa, mantendo-se serena, mesmo diante do horror.

Eu aceitaria de bom grado um vídeo que enaltecesse a educação dela, mesmo diante do horror. Porque e o que eu espero de TODAS as autoridades, tanto diante de desmandos quanto diante de vulneráveis, desfavorecidos, minorias e mais fracos.

É o mínimo!

Esperar dela um gesto de arbítrio, como os exercidos quando a polícia abusa de sua autoridade, em abordagens contra os mais fracos é assumir que, como mulheres, fomos incorrigivelmente derrotadas pelo espírito belicista masculino.

Será o fim fracassado de uma guerra sem vencedores, que jamais deveria ter acontecido.

Não sei vocês, mas eu, sigo lutando, à minha moda: exausta, carregando meu cansaço, que se faz físico, diante de cada imagem de violência que entra pelos meus olhos, e que sinto como se tivesse sido contra mim.

Sigo de lanterna acesa, em busca de gentileza, de escuta, de companheirismo. Desejando saneamento ético e o fim da violência, pessoal, moral, institucional e social.

Sempre.

Quem estiver disponível para cultivar essas condutas, terá espaço comigo. Quem não estiver, peço, POR GENTILEZA, que mantenha distância. Não tenho mais tempo para grosserias.

Sou mulher e estou cansada. Não sou capaz de mensurar a reação que meu cansaço é capaz de produzir.



Obrigada.


 

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

Praça de Guerra



Baseada 
em fatos reais

Aqui estou eu, como de costume, de forma religiosa, lavando o quintal.
Tenho 3 cães e algumas ações se repetem religiosamente, dia após dia, sem falta…
Lavar o quintal é uma delas, assim como dar comida, sair pro passeio, verificar o bem-estar dos bichos. Faço isso religiosamente.
Eis que, me dei conta de que uso o termo “religiosamente” como sinônimo de “sem falta”, “diariamente”, “rotineiramente”.
Uso “religiosamente” porque, semanticamente, para mim, ação religiosa é aquela que se repete todos os dias. Nada a ver com Deus e os assuntos da fé.
E os assuntos da fé são, para mim, sempre, uma prática subversiva. Essa subversão se estende também ao uso da língua.

Relegere, Religio, Religião

Não estou relendo nem religando nada a coisa alguma.
Não preciso religar minha relação com Deus através dos homens. Nem reler!
Sou Deus, diariamente, quando podo e rego minhas plantas, quando pego uma roupa imunda e consigo deixá-la impecável, quando abro a boca e sai  o som da minha voz, quando coloco a comida seca na panela e retiro dela um alimento suculento, quando trato uma pele podre e a vejo brotar nova e regenerada. Convivo com Deus humanamente, amando e odiando em igual proporção e de forma alternada. Brigamos feito cão e gato mas caminhamos unidos como dedo e anel, em profunda, plena e eterna aliança.
*
Balde com desinfetante, vassoura, rodo, saco plástico... Merda por todo o quintal…
Cenário de guerra.
Tiro o carro da garagem para começar a limpeza…
Descendo a rua, um grupo de mulheres idosas, vem em direção à minha casa.
*
(Detesto começar o dia sendo grosseira, mas não tem como dizer não na cara dessas senhoras idosas a serviço da igreja sem me sentir grosseira…
Elas, e tantas outras, para mim, são mão de obra escrava.
O dízimo pago nas igrejas a cada novo cordeiro que assenta seu traseiro nos bancos das instituições religiosas, não as contempla. Elas saem de suas casas carregadas daquilo que acreditam ser a fé, e vão, de porta em porta, como porta-vozes de Deus, levando “a palavra”; traduzem as palavras de Deus, escritas pelo homem, com base no repertório de suas próprias vidas. É, invariavelmente, uma verdade que não me diz respeito! Mas elas acreditam em suas verdades. Acreditam piamente. E vão de porta em porta. Fazem um trabalho de formiguinha, a serviço da Igreja.
A fé vendida nas igrejas exige inconsciência. E a certeza plantada por essa fé, se traduz em arrogância, porque se considera única e verdadeira. Nenhuma outra verdade, que não a da Igreja às quais defendem, serve! Ninguém que se diga detentor da verdade alheia pode se declarar humilde. É um arrogante nato.
Eu quero apenas manter limpo o meu quintal...
Deixo que sigam de porta em porta, se assim lhes aprouver. Mas, na minha porta, não!)
*
Balde com desinfetante, vassoura, rodo, saco plástico e merda por todo o quintal...
Cenário de guerra.
Tiro o carro da garagem para começar a limpeza.
Descendo a rua, um grupo de idosas. Chamo a cachorra que escapou ao tirar o carro e entro. Fecho o portão. Água ao chão, vassoura em punho, começo a limpeza.

“tac, tac, tac”(ruído de palmas no portão)… São elas!

— Bom dia!
—Bom dia.
—Estamos aqui pra trazer a palavra. Nós gostamos de conversar com as pessoas para trazer a verdade de Deus. A senhora acredita em Deus?
—Não só acredito como falo com ele!
*
(olhos alheios arregalados)
*
—Nós trazemos a Bíblia, que é a palavra de Deus, pra mostrar às pessoas o que o Senhor Jesus espera de nós. A senhora conhece a Bíblia?
—Sim, conheço.
—Então a senhora sabe…
—Senhora, por favor, a senhora me perguntou se eu acredito em Deus, e eu disse que não somente acredito como Ele fala comigo. Esta noite Ele me apareceu em sonho e me preveniu! Me disse que muitos falsos profetas bateriam à minha porta falando em nome d’Ele, mas que eu deveria manter meu coração puro e não dar ouvidos.
—Mas a senhora precisa conhecer a Bíblia! A senhora conhece a Bíblia?
—Conheço, senhora. Mas Deus é anterior à existência da Bíblia. Ele se mostra de muitas formas, com muitas vestes, de muitas cores. A cada um pede apenas amor e coração puro. Nada mais. Entre acreditar na Bíblia e acreditar em Deus, prefiro acreditar em Deus, e Ele foi muito claro: não acredite naqueles que baterem à tua porta falando em meu nome. Muito obrigada, bom dia!
*
(olhos arregalados)
*
—Bom dia!

Elas se foram. Ficaram alguns minutos sob a seringueira, na praça em frente, conversando atônitas, apontando para minha casa. Eu, enquanto isso, operava um milagre: meu quintal, depois de lavado, limpo e higienizado, em nada lembrava o cenário de guerra que encontrei ao abrir a porta pela manhã.
*

Às vezes, numa guerra, é preciso conhecer, e saber usar, as armas do oponente.

— Graças a Deus!

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Enforca-gato



Inspirada 
em fatos reais

Lá estavam eles, sempre juntos. Pipas ao vento, cerol na linha e energia abundante para subir e descer a rua, incansavelmente, buscando a melhor corrente de ar para fazer flanar seus losangos coloridos, adornados por longas e flutuantes rabiolas.
Mas hoje foi diferente: chegaram mais tarde. Trouxeram nas mãos, além das pipas, uma raquete com poucos fios, amarrada a um bambu. Eu, da minha varanda, observava.
O menor pegou a vara ponteada pela raquete e a esticou até a forquilha da árvore. Chacoalhou a raquete. De lá caiu um ninho. Os dois se divertiram esmagando os ovos com os pés. No final da tarde um casal de pais sobrevoava a árvore piando desesperadamente.

Eles voltaram no dia seguinte. Dessa vez nem trouxeram as pipas. 
O maior ficou na retaguarda, enquanto o menor subiu no caixote, apoiado no chão pelo lado mais estreito. Novamente, chacoalhou o galho derrubando outro ninho. O maior se incumbiu de pisotear os ovos.

No terceiro dia esperei por eles camuflada entre os arbustos.
Os dois chegaram e balançaram mais uma árvore. No ninho caído não havia ovos mas ouvi piados suaves e desesperados. O menino maior correu, levando consigo sua presa-troféu.
O menor, distraído, olhava o ninho e não percebeu minha aproximação. Extraía a penugem fina do animal, ainda cego e indefeso, agonizante e quase morto.
Era um predador! Como uma mãe que perdera seu terceiro ninho, não resisti: engalfinhei meus cinco dedos nos cabelos loiros, finos e lisos do garoto. 

Dei-lhe um tranco vigoroso nos cabelos e ele, apavorado, com o pássaro depenado nas mãos, silenciou. Não deu um pio.
O imobilizei com um enforca-gato, juntando suas mãos à frente do corpo para que nunca mais derrubasse ninhos à frente da minha varanda.

Recolhi caixote, bambu, raquete e o ninho. O pássaro morto coloquei dentro de um saquinho branco de tecido. Levei tudo comigo como provas. 
Decidi escoltá-lo até seus pais e ele, passivamente, me indicou um caminho. Um sobe e desce interminável de ladeiras, vielas estreitas sem saída, ruas sem casa.
Chegamos em uma praça onde idosos jogavam dominó e cães de rua dormiam em papelões à porta do banheiro público. Pequenos quiosques vendiam iguarias fuleiras: coxinhas gordurosas e frias, espetinhos ressecados, refrigerantes quentes, sorvidos desesperadamente pelos garis acalorados.

O olhar desamparado do garoto revelava tudo: estava perdido!

Coloquei-o sentado em um banquinho de cimento, com os braços estendidos sobre a mesinha, as mãos onde eu pudesse ver e o interroguei por horas: queria o endereço de seus pais. 

Sobre a mesinha de alvenaria deixei meu celular e esperei que ele telefonasse pedindo socorro. Ele permaneceu imóvel.

Os transeuntes, passavam por nós indiferentes.

E fui desistindo dele. Desisti de interrogá-lo e ele também desistiu de si mesmo. Permaneceu solenemente calado. 

Deixei-o lá na praça desconhecida e com suas bugigangas depositadas sob seus pés. Me afastei sem olhar pra trás. Coração acelerado e já sem ar.

Nesse instante meu relógio despertou, acordei e fui nadar.

terça-feira, 1 de outubro de 2019

Nova Safra

Queria muito ver os MANDA-CHUVAS da CPTM, e suas respectivas mães, viajando em trens como este, com bancos cuja largura sequer comporta dois passageiros sentados lado a lado, dignamente, e cujo comprimento do assento corresponde ao tamanho de um assento de cadeira de maternal. Sem falar do encosto, em angulo reto, inviabilizando qualquer posição confortável para a coluna!
"TRENS ESPANHÓIS DE NOVA SAFRA" é o meu CU!!!
São trens considerados "sucata" na Europa e trazidos pra cá a peso de ouro. E são trens planejados para percursos curtos e rápidos, onde, na maioria das vezes, o passageiro não tem necessidade de se sentar e onde SUPERLOTAÇÃO é termo desconhecido .
Mas quem é que disse que GADO precisa viajar com conforto e dignidade?

24 anos de PSDB em São Paulo!

Nós merecemos muito ser tratados como GADO

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Nudez



A vida cresceu e a casa ficou pequena.
O tempo, em nós, esculpe marcas que nos revigoram, mas, enquanto isso, nossa casa envelhece.

Chegamos nela atraídos pelo jardim. Amplo, gramado, com jabuticabeira. O jardim nos convidou a ficar e ficamos.
Aqui festejamos, aqui semeamos e colhemos, aqui partilhamos festas e afetos. Aqui adoecemos e encontramos cura.
Aqui a família cresceu de forma agregadora, com cada um somando mais um. Perdemos a conta, já! Foram algumas dezenas nos últimos 3 anos.
Nesta casa, quando chega alguém, é sempre alguém que nunca vem só.
As chegadas são em revoada: "Flapflapflap"... Chegam batendo asas. Fazem pouso. Fazem ninho. Fixam estada por aqui.
E a casa, agora pequena, precisa de mais tetos pra abrigar a passarinhada.

Nossa casa nos recebeu como uma avó recebe seus netos: acolhedora. Nos ofereceu abrigo, teto, segurança, ir e devir. Mas, é idosa e definha, dia a dia.
De suas parede externas desprendem-se os azulejos, que iniciavam já seu descolamento, desde antes de nossa chegada.
Ao fundo, a edícula recusa hóspedes pois tem seu telhado habitado pelos cupins.
Na cozinha, a pia vai perdendo suas vestes: o gabinete, ano a ano, foi carcomido pela podridão úmida, emergente do esgoto mal acabado, há décadas esquecido por trás das portas mal fechadas.
Luzes... Há muitas. Muitas delas nunca piscaram para nós. Desativadas, foram nunca por nós utilizadas.
Fizemos um gato. Iluminamos o quintal e nele festejamos o São João. Foram 3 anos consecutivos de alegria borbulhante, no quintal desta casa-festa que nos acolheu como uma avó acolhe seus netos: amorosa, porém, idosa, enfraquecida e definhando.

A vida cresceu e o telhado já não comporta mais a chuva, que respinga entre os vãos provocados pelo tempo e os furos crescentes nas calhas. A água não pede passagem. Ela simplesmente vem. Respinga. Tanto bate até que fura. Uma cachoeira resolveu furar a porta do escritório, que, desde nossa chegada, já vinha ensaiando um orifício...

Mas nossa casa resiste. Vem resistindo, há décadas, ano a ano, honrando a imponente memória de sua imagem na juventude: soberana, altiplana, observando a rua como quem olha o vale do alto de uma colina.

Por tudo isso, Ela é linda!

Começa a se despedir de nossas vidas... Despe-se dos quadros, das luzes, das cortinas e tapetes. Mantém portas abertas para o carregamento de saída.
Não nos perguntou nada. Nada nos cobrou.
Apenas permanece imóvel enquanto a desnudamos.
Esvaziaremos suas paredes. 
Levaremos os quadros, os vasos, as cortinas.
Enrolaremos os tapetes, empacotaremos as almofadas.
Descartaremos montanhas de inutilidades.
Desfilaremos pelo caos, entre caixas e, desse caos, surgirão as prioridades. 
Durante sete dias transportaremos memórias, visões, atos, fracassos e conquistas.
Durante sete dias migraremos de cá pra lá, levando o que nos basta, deixando o que não nos cabe, descartando o que já não há.
Serão 7 dias de despedida silenciosa. Sei que ela nada dirá!

E nossa casa, de nós, perderá tudo! Se despirá de cor, perderá seu cheiro, ficará sem luz.
Levaremos tudo. Menos ela.
Ela ficará nua, vazia e só, como estava quando por aqui aportamos.

Ela nos deu teto, amparo, segurança e diversão. Ela nos deu tudo. Não nos pediu nada. Nem mesmo que ficássemos!
Os gatos e os cães, levaremos. Se houvesse flores, levaríamos. Ela consentiria.
Nossa casa cuidou de nós. Comportou tudo. Acolheu todos. Nos ensinou a abrir portões e acender fogueiras.
Está quase nua. E ficará só.
Nós, nos vamos.
Decididos, fecharemos os portões.

Não diremos nada. Ela saberá...
Mudamos.

domingo, 18 de agosto de 2019

Vazio




Considero difícil descrever o vazio. Por uma razão simples: na vida sempre buscamos o preenchimento. E o vazio é uma ilusão sensorial, dúbia e paradoxal.
Por exclusiva falta de parâmetros comparativos entre o vazio e os demais medos,  fica o vazio ali, largadinho, no canto, esperando que alguém olhe pra ele com olhos amistosos.
- O vazio assusta!
Todo mundo quer algo, pra usar em algum momento, pra mostrar pra algum amigo, pra preencher algum vão da vida, pra carregar de lado ao outro. 
Tudo, tudo pra camuflar o vazio.
- Ah, o vazio é o nada!
Descobri que o vazio é uma imensidão plena onde tudo cabe. Como poderia concordar que isso é nada?
O vazio é tudo o que está presente e invisível, o vazio é a expectativa sem necessidade de satisfação, é o caminho que se percorre sem obrigação de chegada.
O vazio é leve mas muitos temem seu peso.
O vazio atrai olhares mesmo sem ser visto.
Conheci o vazio e o trouxe pra minha morada.
Leve, fluido, sem forma, sem odor.
No meu vazio cabe o mundo inteiro.
Descobri que a felicidade é o sentimento que borbulha quando o vazio se completa.

Ser feliz é abraçar seu vazio. Ser seu continente e seu próprio conteúdo, é flutuar como balão de gás Hélio, é não buscar nada porque o todo está pleno.
Meu vazio mora comigo, me alegra, me distrai, me faz companhia.
Não está mais à espreita. Não me acua mais, está aí para ser preenchido ou apenas para me transmitir paz.
Decidi preenchê-lo sorrindo, fazendo festa, com brilho nos olhos, com o peito procurando pelo futuro.
Eu o preenchi comigo mesma e descobri que isso é ser feliz.
O vazio é meu. Preencho como eu quiser.

sábado, 17 de agosto de 2019

Faísca



Às vezes eu perco o sono. É raro, mas acontece. Hoje é um desses dias. Morfeu não quis me abraçar…
A casa, silenciosa e apagada. O único cômodo aceso é meu cérebro, por onde as caraminholas passeiam desavisadas e indecentes...
Penso bobagens, crio planos, construo estratagemas.
Elaboro estratégias que certamente não seguirei. Mas, crio, mesmo assim! Elas me servirão de repertório imaginário para o momento exato da ação. Momento que nem sei se virá, mas, para o qual estarei pronta!
Assim funciona minha cabeça. Incansável e insana. Exausta. Precisando extravasar o desejo de revirar o mundo.
Que mundo besta!
Neste mundo besta, levo a vida fazendo coleta. Coleto imagens, coleto sons, coleto informações, coleto curiosidades, coleto desapegos e desafetos. Coleto carinhos e afagos. Coleto esperanças e filas de espera. Coleto naufrágios e portos seguros. Coleto frutas amargas, flores secas, chão sem vida. Coleto fruteira colorida, vaso desabrochando e terra adubada. Coleto mudança, novos ares, horizontes distantes e disponíveis. Horizontes verticais, horizontes montanhosos, horizontes beira-mar.
E nessas coletas todas vem gente também…
Gentes de todos os tipos. Alguns de coração latejante. Outros empedrados. Olhos vivos, outros vidrados. Hálitos frescos, peles mornas, mãos firmes… alguns pés descalços. Várias almas empoeiradas: prateleiras esquecidas de memórias não usadas. São gentes de todos os tipos!
Coleto a friagem, que me encatarra o peito e embarga a voz. Nasce um pigarro, e vira tosse. Se mimetiza em escarro que põe pra fora o palavrão que não gritei, o insulto que não revidei, a provocação recebida que ficou sem resposta.
Provocações: Não as respondo mais!
Porque a vida me provoca de várias formas e tenho escolhido as mais leves.
Tenho escolhido a leveza da risada dos Patetas, o latido estridente da cadela de cauda longa, a preguiça prolongada da gata de olhos grandes, o cheiro do café com cigarro que acorda a casa.
Tenho escolhido aumentar a família com filhos que pego por empréstimo por algumas horas…
Tenho escolhido caminhar em busca. Tenho escolhido querer mais.
Mais gentes e mais coletas!
Coletas que me tirem o sono com planos mirabolantes. Coletas que me instiguem por caminhos pelos quais nunca passei. Coletas que me apresentem seres iluminados e generosos, que me peguem pela mão e me digam:“Vem, você consegue!”
Quero coletar histórias, coletar memórias e descartar rancores. Quero descartar o ranço dos que foram carcomidos pelo fracasso.
Quero oferecer adubo a quem quiser florescer. Quero deixar exemplo pra quem quiser crescer.
Cansaço imenso de olhar pela janela da desesperança e só ver derrota. Estamos derrotados. É fato!
Fomos vencidos pela discórdia e pelo retrocesso. Fomos vencidos pelo lamaçal que nos envergonha mundo afora. Fomos vencidos pela usura, que especula com nossos bolsos e nossas vidas, nos dá tostão de troco e ainda nos confisca o direito de escolha. Fomos vencidos. Fato.
Mas, não há derrota para aquele que mantém o cérebro aceso!
E meu cérebro é meu sótão, que permanece claro no meio desta escuridão. Ela não conseguirá me engolir!
Meu cérebro, agora, cataloga amigos novos, que chegam afins e caminham juntos.
Meu cérebro se ilumina com o gesto de acolhimento e impulso em direção ao novo.
Quero ir!
E eu vou! Tenho pressa.
Quero cerrar fileiras, quero ir à luta. Quero travar a batalha final. Derradeira. Depois dela serão somente louros. Não haverá grilhões. Não haverá impedimentos; não haverá obstáculos humanos, desumanos ou sobrenaturais que fechem caminhos ou bloqueiem passagens. Não haverá! Porque um único ponto de luz ilumina uma vida inteira.
Prometeu, com uma faísca, deu luz a toda a Humanidade. Levo comigo esta mesma faísca e, com ela, mantenho meu sótão iluminado.