sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Cuidado mulheres: é tudo balela!

 
Sou de uma geração que está mergulhada em um buraco afetivo!
A minha geração é composta de mulheres loucas pra ser fêmeas, mas cheias de medo das consequências disso.
Segundo as revistas femininas, uma super mulher está sempre perfumada, penteada, maquiada, pronta pra tomar um vinho em ótima companhia, companhia que lhe proporcionará orgasmos múltiplos e de vários minutos de duração.
A minha geração está repleta de homens que dizem que não conseguem entender a cabeça das mulheres.
Segundo as revistas masculinas uma super mulher tem truques de sedução, que vão desde a coreografia de uma cruzada de pernas, passando pela quantidade certa de umidade nos lábios, pela capacidade de multiplicar as contrações do sexo, pelos decotes, pelas calças justas, pelas transparências, pelos saltos altos, pelas meias insinuantes e, enfim, pasmem, chegando na tão decantada SEGURANÇA!
Que segurança é possível quando se faz necessário conciliar tantos truques? Só mesmo em espetáculos de ilusionismo.
Mas estou falando de amor. Não de ilusão!
As revistas femininas dão dicas do que fazer hoje pra que ele te ligue amanhã.
As revistas masculinas esclarecem o que foi que ela fez de errado ontem, para que ele não tenha vontade de ligar nunca mais!
E de revista em revista, vejo que minha geração simplesmente não se encontra!
Como diria o Drummond: "João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que não amava ninguém".
E de amor em amor, parece que o desamor impera e ninguém se encontra mais.
Onde estão os homens que abrem a porta do carro, que andam pelo lado de fora da calçada pra proteger a parceira, que puxam a cadeira pra ela sentar, que a esperam escolher seu prato no restaurante e que, depois disso chamam o garçom e fazem o pedido por ela?
E, como se tudo isso ainda não bastasse, ainda a cobrem quando adormece depois de fazer amor?
Onde estão as mulheres que brindam os olhos do parceiro com um olhar doce, que dizem "bom dia meu amor", que estão dispostas a fazer um afago pelo simples prazer do contato?
Onde é que nós estamos, homens e mulheres da minha geração?
Estamos quase todos, homens e mulheres, tentando agir de acordo com o que se divulga nas revistas, tanto femininas quanto masculinas.
Eu não quero mais isso pra mim! nem de brincadeira...
Eu quero poder dormir só de calcinha e camiseta regata e me saber sedutora, mesmo assim.
Eu quero poder sair de casa de cara lavada e ser atraente, mesmo assim
Eu quero poder usar meu tempo livre passeando com meus cães, em vez de ficar horas no salão de beleza, só porque minha beleza já está comigo, não precisa ser construída artificialmente!
Eu quero poder fazer tricô e isso não ser uma mancha no meu currículo de mulher moderna!
Eu quero poder chorar a morte da minha Tia, sozinha, em baixo do chuveiro, e isso não ser um demérito na minha tão conclamada "personalidade forte".
Eu quero poder ser eu mesma, sem retoques, porque não sou obrigada a concorrer com as inúmeras garotinhas "photoshopadas" das revistas "masculinas".
Eu quero poder olhar meu parceiro e rir com ele dos absurdos que fazemos juntos, naqueles momentos em que as revistas, masculinas e femininas, aconselhariam "SENSUALIDADE MÁXIMA"
Eu quero mesmo é poder contar a lição que tenho aprendido neste último ano:
- Mulheres como eu, não queimem seus sutiãs. Queimem as revistas. Elas estão todas mentindo!!!
Posso afirmar - por ter ouvido de uma fonte fidedigna - que os homens gostam quando as mulheres se sentem bonitas, mesmo com cara lavada, e as preferem assim, porque ser bonita é diferente de estar bonita.
Os homens gostam de mulheres que dormem com roupinhas molezinhas, de algodão...
Os homens gostam de mulheres que dão risada com eles e que, quando olham nos olhos, carregam um sorriso discreto e quase imperceptível ao olhar dos outros. Um sorriso pactuado e cúmplice na molecagem...
Mulheres, esqueçam os perfumes que dominam o ambiente... Prefiram aqueles perfumes que só se pode sentir de perto! Nada melhor do que conciliar múltiplos sentidos, no caso, tato e olfato...
Os homens gostam de mulheres que se disponham a cozinhar pra eles, ou cozinhar com eles, ou não cozinhem, mas comam com eles...
Os homens gostam das mulheres que se expõem. Não as que se exibem, mas as que se deixam conhecer!
Os homens gostam de mulheres seguras, é um fato. Porém ser segura significa conseguir absorver o impacto causado pelo medo, não significa fingir que o medo não existe!
Os homens gostam de mulheres delicadas. E ser delicada não é ser um bibelô, uma boneca de açúcar. Ser delicada é saber aceitar a dor, se ela vier, saber viver a alegria, quando ela chegar, é comemorar humildemente a conquista, quando ela acontecer. Tudo isso sem estardalhaço. Essa é a maior delicadeza.
O que acontece entre um casal, pertence somente aos dois. A mais ninguém. Essa é a delicadeza das mulheres fortes.
- Mulheres como eu, deixem suas amigas fora da sua intimidade!!!
- Mulheres como eu, entendam que a fantasia é diferente da realidade: maquilagem deixa a mulher bonita, mas deixa também um gosto químico na boca do parceiro, meia fina dá um ar de elegância, mas dá muito trabalho pra tirar, perfume forte esconde seu aroma natural, roupas rebuscadas dificultam o contato com a pele.
- Mulheres como eu, acreditem: sensualidade é diretamente proporcional ao bom humor.
Tudo o que as revistas femininas preconizam como garantia para causar uma boa impressão é a mais pura balela!
Simplesmente porque, segundo o meu parceiro, mulher não entende nada de mulher. Pelo menos ele me diz isso sempre "Tâni, você não entende nada de mulher". Sou obrigada a concordar!
As revistas masculinas também não merecem crédito!
Afinal, qualquer homem que se preste a contar em uma pesquisa ou entrevista, detalhes sobre a sua intimidade afetiva, sobre suas preferências e fantasias, somente pra ser mais um na estatística da sexualidade de bancas de jornal, é, no mínimo, pouco confiável. Creio que essas reportagens sirvam mais como promoção do ego masculino do que como um guia confiável pra mulheres solitárias, como as que lêem revistas femininas! Talvez os homens entrevistados nem existam, porque as mulheres que eles descrevem certamente só existem num universo imaginário!
Mas eu me descobri existindo, sem maquilagem. E meu parceiro ressurgiu, rindo comigo depois de uma molecagem...
Depois de tudo isso, só me resta declarar: eu fiz curso de corte e costura, de arte culinária, de bordado em talagarça e vagonite, durmo de calcinha de algodão e camiseta regata, quase não uso maquilagem, meu cabelo só vê o cabeleireiro de quando em vez, meu perfume é o mesmo há 13 anos, dou risada durante a intimidade, falo dormindo, ronco, choro muito até esvaziar o peito quando sinto dor, e não leio revistas femininas.
Adoro quando o meu namorado troca de lugar comigo na calçada pra me proteger do trânsito, quando ele me chama pra almoçar, mesmo que correndo, quando se comunica comigo durante o dia, como um menino, mandando incansáveis mensagens pelo SMS, quando ele olha pra mim e me diz, " você está tão linda"...
Aprendi que a melhor forma de agradecer esse amor todo é acreditando, e sorrindo, silenciosamente! De uma forma muito feminina, quase recatada. Ele me ensinou isso!
Eu faço tudo ao contrário do que ensinam as revistas femininas.
Ele é o contrário dos homens que relatam suas experiências em revistas masculinas.
E acreditem, homens como ele gostam de simplicidade, nada de elaboração. E, principalmente, gostam de mulheres que se permitem ser mulheres... Pelo menos o meu, que me faz carinho, que troca de lado comigo na calçada, que carrega a minha mochila, que faz o pedido pro garçom no restaurante, que me elogia e me aconchega o tempo todo; gosta!
Revista feminina nenhuma no mundo me ensinaria isso.
Revista masculina nenhuma me escolheria como um exemplo de sedução.
Mas, que se lixem as revistas.
Sedução é outra coisa. Acreditem: esta é a verdade. Hoje eu sei!
Ah, esqueci de dizer: Sim, eu também sei fazer tricô!

O Viaduto

Viaduto do Chá - São Paulo
- Ei, espere!

Bastaria para resgatá-lo, para trazê-lo novamente aos braços do mundo e a todas as coisas que dão sentido ao fato de estar vivo!
Mas, naquela fração de segundo toda a sua vida havia passado diante dos seus olhos e nada, nenhum fato trazia sentido à sua existência.

- Pedro, não pule!

Poderia ter sido o bastante para faze-lo pensar na tolice que seria pular e, nesse segundo mágico e definitivo, suas pernas bambeariam, seus olhos turvariam, seu coração dispararia e suas mão tremulas e frias produziriam grande quantidade de suor.
Ele se lembraria da Rita!
Ela lhe havia pedido que não esquecesse o leite dos meninos e por isso não poderia pular agora.
- Quem haveria de levar o leite?

- Cuidado!

E Pedro, como num susto olharia para trás e desceria da mureta num sobressalto. Já na calçada depararia com um jogador de búzios e esse lhe contaria os perigos d'O Viaduto:
- Sabe, moço, semana passada um rapaz pulou lá em baixo só porque perdeu o emprego!
Acho que era fraco da cabeça, o Senhor não acha?
E Pedro se limitaria a abanar a cabeça, olharia apressado o relógio de pulso e constataria que apenas dez minutos o separavam do horário em que bateria o cartão de ponto!
Responderia laconicamente:
- É, acho que sim!
Teria se despedido e partido...

- Moço, o que o senhor vai fazer?

Pedro, com tal interpelação retornaria do seu delírio, olharia para o ambulante e, envergonhado, esconderia a verdade:
- Nada, estava só olhando!

-Psiu, desce daí, maluco!

Pedro, desligado do mundo, mal conseguiria ouvir os gritos da criança que faz ponto n'O Viaduto.
O menino, meio inocente, meio desconfiado, o puxaria pelo fundo da velha calça de gabardine azul e o repreenderia com a sabedoria comum às crianças:
- Não fica aí olhando pra baixo porque dá tontura, moço. Vai cair, hein!
Pedro, ainda atônito, ouviria a voz aguda da criança e lembraria dos meninos: Recordaria todas as vezes em que precisara acudir menor ou outras tantas em que explicara ao mais velho sobre os perigos da altura.
Refletiria sobre a sorte dos meninos: "Deus olha por eles!"

Pedro, funcionário público, passava pel'O Viaduto diariamente, no mesmo horário. Sempre pontual!
Até então todos os dias haviam sido iguais.
Até hoje, nenhum repente de loucura ou heroísmo havia sido suficiente para transformá-lo em uma celebridade.
Mas este era um dia diferente!

Nenhuma tolice corriqueira havia ocupado seu pensamento: Nem o leite das crianças (A Rita preferiu comprar leite em pó no dia da despesa); nem o horário do serviço (lá na repartição haviam substituído o relógio pelo livro de ponto); nem mesmo o jogador de búzios estivera naquele dia trabalhando n'O Viaduto.
Então Pedro, desolado, pensou: "que pena, hoje eu queria saber meu futuro..."

De repente, como num relâmpago, Pedro teve confirmada a certeza de que seu momento de ousadia e heroísmo não seria interrompido por ninguém!

Um segundo...
Uma fração de segundo!
Um mero instante.

Eis o futuro chegando de açoite.


- Tem documentos?
- Não.
- Mais um indigente...
- Não, senhores, só mais um momento, fotos ainda não!
- Vamos isolar o corpo, por favor, afastem, afastem!

Chega o Resgate.

- Cuidado, não mexe. Vamos imobilizar a cervical!
- Sem pulso. Traumatismo craniano.
- Hora do óbito?
- 13:30

- Você viu, mano, o cara rachou a cabeça!

Sangue. Fotos. Jornal.
Gente n'O Viaduto, muita gente!

- Eu já o vi n'O Viaduto antes...
- É, coitado, tão jovem!
- Jovem e “pinél”. Eu hein? Vai que eu pulo e dá errado... Não morro... Fico aleijado... Deus me livre!
- Pô mano, o cara abriu a cabeça, você não viu o sangue?

Todos olham, todos falam.

- Será que ele era viado?
- Que nada, cara, tem toda a pinta de drogado. Pra pular assim ele devia estar muito chapado!

E, em baixo do saco preto, o corpo de Pedro foi, aos poucos, saindo de órbita e se despedindo do mundo:

- "...ei moleque, avisa pra Rita que não tive tempo de comprar o leite. Não fala nada pro meu chefe. Ninguém vai dar pela minha falta: tiraram o relógio de ponto...
- Ah, os meninos..."

E assim foi: O futuro chegou há um segundo atrás.

Ninguém n'O Viaduto o conhecia. Ninguém sabia seu nome. Ninguém percebeu que a altura era muita. Ninguém o viu debruçado na mureta.
Naquele segundo, O Viaduto, caoticamente ocupado por transeuntes, parecia estar vazio!
Por azar, naquele dia, o anjo da guarda de Pedro havia tirado um minutinho para descanso...

- Ó LÁ, MEU, O CARA PULOU!

"DING-DONG"

- Oi!
- Oi, Rita, o Pedro está aí?
- Não, ainda não chegou!
- Quando ele chegar, fala pra ele passar no 5.º DP, lá em Santa Cecília. Prenderam um trombadinha na Praça Roosevelt com a carteira dele. Mas só os documentos. Nada da grana.
- Ah, então é por isso que ele ainda não chegou. Ele nunca se atrasa! - Entra, senta e espera um pouquinho, vou passar um café.

O Pedro já chega já!


Viaduto do Chá - 12/08/1993 - 13h30min - Cronica de um suicídio presenciado
Tânia Viana

Luto





















Aragem fria e úmida da manhã desprende-se da Serra e me visita.
Batiza e refresca meu coração pagão que pulsa e ferve.
- Aquece, Aragem,
recebe o sol fresco que se levanta...,
acorda e canta.
Visita meu coração ateu!

- Agita-te, Aragem.
Carrega meu coração em ventania.
Ele em ritual pagão se cansa...
E de mal com Deus se perde no anoitecer,
em agonia!

- Repousa Aragem.

Eu, banhada na luz da noite,
fatigada encontro teu coração.
... Silente.
Em desespero te ausculto, coração.
... Ausente.

Em sonho rogo e suplico:
- Vem, coração, volta do escuro do ar que te faltou!
Morreu...
Morto ficou o Coração no breu.

- Foge de mim, Aragem!
No refúgio da Serra, morada tua que te resfria,
esconde-te de mim...
Por hoje, esquece meu coração.

- Retorna amanhã, Aragem,
vem e me resgata!
Tira de mim a sombra do coração que se perdeu.

Volta amanhã, Aragem...
Pois amanhã, ainda em luto, meu coração volta a ser teu!

Pra minha Tia Maria...
* 05/09/1945—23/05/2010

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Conto de fadas










Algumas lembranças ficam registradas em nossa mente como marca d'água. Tênues e indefinidas... Sem muitos contornos. Quase sem cor.
Dados importantes perdem-se no decorrer dos anos, transformando a memória em nada mais nada menos do que o registro de uma vaga lembrança.
Outras imagens flutuam em nossa memória, oscilando entre a certeza absoluta e a dúvida cruel. Como se fossem o resultado de um sonho que não sabemos bem ao certo se realmente sonhamos ou não. Vão e voltam. Vem e vão. As vezes desaparecem e nem nos damos conta disso. De repente voltam como se o fato tivesse acabado de acontecer... Dribles mentais que estão condicionados pelo exercício do "esquecer para lembrar"!
Mas existem fatos que nos perseguem pela vida a fora como uma foto "três por quatro" de carteira de identidade.
Definidas, claras, indiscutíveis memórias fixadas em nossas lembranças com a clareza de uma fotografia.
Assim são para mim algumas imagens da minha infância.
Imagens que fotografei, sentada em privilegiado ponto da minha casa: O patamar que separa o primeiro do segundo lance da escada que até hoje dá acesso ao pavimento superior da casa dos meus pais.
Dali, quando criança, muitas vezes escondida atrás da parede, muitas vezes distraída com meus cadernos, muitas vezes visível a quem adentrasse pela porta, aprendi cada coisa! Vislumbrei cada situação... Presenciei cada história!
Uma dessas histórias tem um traço de humor que prefiro omitir, para não esvaziar a beleza que ela encerra.
Quero falar da amizade entre meu pai e o Sr. Abraão.
Meu pai era do tipo que acordava cedo, dormia pouco, falava muito, tomava religiosamente seu cafezinho preto após o almoço que, segundo ele, era um santo remédio contra a dor de cabeça, sentava-se à sua mesa, situada no pavimento inferior de nossa casa, na sala cuja porta dá direto para a rua. Lia os jornais. Três por dia: O Estadão, A Folha de São Paulo e o Diário do Grande ABC. Era assim que começava seu dia: abrindo a porta, sentando-se à mesa e lendo os jornais. Depois lia um livro, depois redigia um documento, depois conversava com alguém que o abordava... que batia à porta que, por sinal, estava sempre, sempre aberta. Assim passava o dia...
E eu, criança de convivência difícil, quase sem amigos, curiosa e faladeira, muitas vezes sentada no patamar da escada, participava passivamente desse movimento.
Meu pai adorava apostar na loteria. De tanto jogar, ganhou duas vezes, sozinho, na loteria federal.
Em função desse gosto pelas loterias, muitos dos seus conhecidos eram vendedores de bilhetes, "cambistas" que apareciam invariavelmente às quartas e sábados, dias de extração, quando se aproximavam as seis horas da tarde e os bilhetes estavam encalhados.
Cansei de ver meu pai arrematar tudo, comprar fiado, trocar finais premiados por novos bilhetes para a próxima extração, encomendar números com os quais havia sonhado! Ganhava algumas vezes... perdia outras!
Mas havia um bilheteiro que vinha em casa muitas vezes apenas pelo prazer da conversa...
Era o "Seu" Abraão.
"Seu Abraão" pra mim, porque para meu pai, era apenas Abrão!
Ele vinha com sua bolsa de couro preta a tiracolo, fechada com um zíper e com uma aba sobreposta, fechada com um botão. Entrava, sentava-se. Tirava a bolsa que, na minha imaginação, devia ser muito pesada. Puxava a cadeira e subia nela com muita dificuldade. Colocava a bolsa por sobre a mesa e começava o papo, que eu acompanhava com toda a atenção.
Falavam de política, do bicho que havia dado na corrida anterior, da danada da borboleta 13 que ele estava seguindo e não dava de jeito nenhum. Não raro era meu pai pedir que eu fosse até minha mãe e pedisse a ela para passar um café.
Eu ia, muito a contragosto. Pedia e voltava correndo para não perder o fio da meada da conversa que eles dois estavam entabulando lá em baixo.
Meu pai e "Seu" Abraão eram muito amigos.
Eu não entendia muito aquela amizade, porque entre os amigos de meu pai não havia ninguém como "Seu" Abraão!
Ele era um homem que carregava aquela bolsa nos ombros, cruzada sobre o peito, durante todo o dia, cheia de bilhetes de loteria. Certamente havia alguma outra coisa a mais dentro dela, porque ela pesava tanto que ele, para suportar o peso, ficava inclusive inclinado para frente e para o lado, entortando as costas!
Sentava-se para conversar com meu pai e ficava o tempo todo balançando as pernas. Parecia uma criança que se senta em uma cadeira muito alta e o pé não alcança o chão.
Mas ele era adulto, com certa idade, voz grave, cabeleira vasta e negra. Era meio gordinho. Tinha as mãos pequenas, os pés também. Vestia-se de forma engraçada... Usava uma espécie de boina com uma aba na frente e um tapa orelhas que ficava abotoado no alto da cabeça. Usava suspensórios!
Acho que ele vinha em casa apenas para conversar com meu pai e descansar as costas, exaustas que deviam estar por causa da bolsa pesada. Não sabia o que ele carregava lá dentro, além dos bilhetes. Mas sabia que ela o deixava tortinho, tortinho...
Um dia meu pai ganhou na Loteria Federal! Bilhete inteiro. Extração de Natal... Uma bolada. Bilhete vendido pelo "Seu" Abraão.
"Seu" Abraão dava sorte para o meu pai, mas não tinha sorte igual: não colheu os louros de sua venda porque eram tantos os cambistas que negociavam com meu pai que cada um saiu espalhando a autoria da venda do bilhete premiado! O único que não fez isso foi "Seu" Abraão. Ninguém acreditaria nele!
Por mais que meu pai desmentisse os outros bilheteiros e afirmasse que havia sido "Seu" Abraão o autor da venda, ninguém acreditava, porque todo mundo considerava "Seu" Abraão um "pé frio". Achavam que meu pai creditava a ele o mérito pelo bilhete premiado por pena! Apenas para ajudá-lo.
Mas meu pai, amigo que era, deu a ele a devida gratificação: uma porcentagem do valor do prêmio, que eu não sei dizer de quanto foi... Só sei que a amizade entre os dois só aumentava.
Um dia vejo Sr. Gustavo, agente funerário, chegando em casa, tocando a campainha e chamando meu pai às pressas.
Começou uma movimentação estranha na sala do meu pai: Ele retirou a mesa, as cadeiras, liberou espaço. Começaram a trazer coroas de flores, suportes para velas, uma mesa esquisita: comprida, mais estreita e mais alta do que as demais. Começaram a chegar pessoas estranhas, minha mãe fazendo café pra todo mundo... ninguém ia embora!
E o meu pai arrasado!
Aí, de repente, a notícia: O "Seu" Abraão havia morrido. Foi encontrado em casa, morto, sem família, sem ninguém que olhasse por ele.
Coube ao meu pai liberar corpo e providenciar o enterro.
Naquela época não havia o serviço de velório municipal, razão pela qual "Seu" Abraão foi preparado para o velório em um dos quartos da minha casa. Eu, como sempre muito curiosa, dei um jeito de olhar pela fresta da porta.
A visão foi reveladora: descobri porque "Seu" Abraão era tão sozinho, porque era considerado "pé frio", porque ninguém comprava os bilhetes dele!
Entendi também porque ele permanecia balançando as pernas quando sentava-se para conversar com meu pai, porque carregava aquela bolsa que o deixava torto, porque usava suspensórios, porque tinha as mãos e os pés tão pequenos, porque escondia a cabeça com a boina.
Pela fresta da porta vi pela primeira vez o "Seu" Abraão tão de perto. Eu só o via da janela do andar de cima de casa ou do patamar da escada, quando ele já estava sentado.
No dia de sua morte descobri, quando tiraram suas roupas, que ele era do meu tamanho e eu tinha apenas 6 anos de idade!
A sua bolsa não era culpada por seu corpo estar sempre torto! "Seu" Abraão tinha uma corcunda extremamente acentuada, por isso seu corpo era tão inclinado para frente. Também por isso usava suspensórios: sua corcunda estendia-se até o meio das costas, impedindo que suas calças ficassem firmes no lugar!
Ele era solitário, estranho, considerado "pé frio" tudo isso porque era Anão e Corcunda!
Anos depois vim a saber que ele era também judeu. Carregava na bolsa a "Torá", livro sagrado Judaico, cujo exemplar meu pai herdou. Sob sua boina escondia-se um "Kipá", pequena circunferência de feltro utilizada pelos judeus como símbolo de temor a Deus.
Para meu pai a perda foi irreparável: "Seu" Abraão era um grande amigo!
Ele era como uma figura de conto de fadas: Era um amigo anão, corcunda, judeu e que trazia muita sorte!
Foi velado na sala da minha casa, e meu pai, no cortejo do seu enterro, segurou a alça da frente do seu minúsculo caixão.
Aquela foi a primeira vez que vi meu pai chorar.

Onde bate a tua água...














- Dodi, pra você:

Ela não bate... Ela me leva!
Me lavo nela de roupa e tudo.
Me banho nela da cabeça aos pés.
Me encharco nela como corpo sem guarda-chuva em dia de tempestade.
Mergulho nela como beduíno em um lago de oásis.
Boio nela como criança em piscina que não dá pé!
Me preencho dela como corpo de cactus, como planta suculenta, como vaso de flor.
Ela pulsa em mim como sangue nas veias,
penetra em mim como jato de sêmen,
faz festa em mim como esguicho de chafariz.
A tua água me refresca, me limpa, me batiza, me hidrata, me renova.
Me deixa úmida.
Me faz brotar como grão-de-feijão em algodão no pires...
Também me afoga.
Também me derruba na enxurrada.
Também me abala as paredes como numa tormenta.
Me escava os alicerces, me infiltra, molha minhas vidraças...
A tua água, pra mim, é água de mina, é água de poço, é água de bica:
fresca, leve, cristalina, insípida, incolor, inodora.
É gelo em suco, é gelatina.
É água de mar, carregada no sal.
É marola, é onda, corredeira, calmaria.
É sereno da manhã, é neblina de montanha, é nuvem...
É cachoeira, é queda d'água.
É uma lágrima que me escorre dos olhos,
é minha saliva, meu suor.
É vapor.
É cor.
É textura de aquarela!
Cria arco-íris contra-luz do sol.
Bate no pé, no joelho, entre as pernas, na cintura, no peito, no pescoço...
Molha e cacheia meus cabelos.
É água de taça, de regador, é água de aquário, de copo, de jarra.
É o gole que salva,
é soro.
É a gota que transborda,
é veio de rio, represa, usina, gerador.
É luz!
É catarata.
É força vital.

Minha alma ressecada bebeu dela, e germinou!

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Lapso
















Minhas lembranças me traem!
Brincam comigo tal qual moleques travessos brincam de pique-esconde entre os arbustos de uma alameda. Surgem e somem com a destreza de um gato branco que se aventura em um labirinto de paredes altas e pouca claridade. Emaranham-se como fios de pipa, cortantes e finos, impossibilitando a reconstrução da meada cronológica e, assim, me transformam numa inútil e patética desmemoriada.
Tantas coisas guardei comigo, confiando na minha memória, outrora pródiga e eficaz, que hoje, neste meu faiscante lapso de lucidez, corro desesperada quando a consciência me atropela e registro coisas que já nem me lembro mais. Passo muito tempo esquecida. Esquecida de mim mesma. Esquecida pelos outros. Me esquecendo de alguém. Quando me lembro, lembro do nada, do vazio, de ninguém!
Minha memória é negativa: registra o que não houve, o que não aconteceu, quem não veio, aquilo que não vi.
E isso para mim é um alento!
Que triste seria saber que perdi o registro do meu amor... que perdi um som suave me acariciando os ouvidos, que não guardei o toque das mãos numa carícia!
Folheio revistas antigas e me deparo com imagens para mim tão presentes, que, todavia, são batizadas de “retrô”, em reportagens de jornalistas moderninhos que acham "pitorescos" alguns dos objetos que povoam minhas memórias, carcomidas pelo tempo! Um “vai-vem”, brinquedo que divertiu muitas das tardes chuvosas da minha infância, quando eu e meus irmãos ocupávamos o corredor de entrada da casa de meus pais. Naquele corredor fazíamos percorrer pelo barbante a esfera ovalada de plástico, incansável viajante, cuja trajetória durava o tempo de nossa disposição física.
Lembro do velho telefone de disco... Hoje me reencontro com a vitrola, que agora volta soberana, acoplável ao computador e capaz de converter registros sonoros impressos em vinil nos mais modernos sons de MP3.
Trouxe comigo, impressos no rol de objetos inesquecíveis, os cadernos brochura, as canetas de 10 cores, a máquina Xereta, peças de museu das quais não me esqueço....
Registros recentes não ficarão para o futuro. Não duram o tempo necessário para se tornar inesquecíveis. Meus filhos não sentirão saudades, não se apegarão a brinquedos duradouros, não marcarão suas trajetórias com roupas e calçados inacabáveis... Não farão piadas com isso...
— Guardarão uma foto?
— Marcarão suas vidas com um diário de fatos do cotidiano??
— O dia, continuará tendo 24 horas???
— Quanto tempo o tempo demorará para passar, na velocidade em que se apresentam as mudanças, que vão do totalmente indispensável ao instantaneamente descartável?

Não sei mais. Nem sequer me lembro de ter telefonado para um amigo para desejar-lhe saúde e sorte, não me recordo de ter festejado o aniversário de meus irmãos, nem mesmo sei que dia é hoje.
Não me lembro. Lembro de ter me esquecido da pessoa que fui.
Sei que tenho vagado sem registros das minhas lembranças recentes, que de tão rápidas, marcaram apenas como um lampejo.
Foi um piscar de olhos que não se transformou em realidade.

Lembro-me do beijo que sofri por não ter dado.
Lembro-me da vitória que não comemorei.
Lembro-me do vazio que ficou ao final da batalha que venci, mas não ganhei...
Lembro-me de ter amado! Esta é a mais forte lembrança que caminha comigo agora. Tão forte que me vem à mente atordoada com a força de uma realidade.
Palpável como um corpo que me aquece e sonora como esta voz que sussura ao meu ouvido:

— Dorme! Fica em paz e não esquece de mim...

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Quando Deus Morre




















Dedicado aos cantores: 
Dênia Campos
Kátia Rocha
 Márcia Degani
 Sira Milani
 Vera Platt
 Nelson Campacci
  Jan Szot

Quando eu era pequena, meus pais me contavam histórias de um Deus que criou os Céus e a Terra e povoou o mundo com criaturas concebidas para crescer e multiplicar, para florescer e frutificar e colocou, no controle de tudo, um ser superior, forte e dotado de inteligência, concebido à sua imagem e semelhança.
O Deus das histórias dos meus pais era Uno, o Senhor da sabedoria, da justiça, dos povos e dos atos todos, que, sob seus olhos não escapavam de prêmio nem de punição, se preciso fosse premiar ou punir.
Depois fui para a escola, tive aulas de religião. Fui ao catecismo e aí começou a confusão:
Primeiro dividiram meu Deus em três, depois confinaram meu Deus em uma rodelinha fina de pão sem fermento e sem sal.
— Quantas vezes engoli aquele Deus sem sal!
Depois, pegaram meu Deus, senhor de todas as coisas pessoas e atos, pregaram na Cruz...
Daí pra frente, tive que me conformar com a possibilidade de sua morte.
Diante dessa possibilidade, que não foi amainada nem com a história da ressurreição e da vida eterna, precisei eu mesma construir um Deus pra mim.

E o meu Deus era sim onipotente, onipresente e onisciente.

Sua onipotência se fazia perceber através do poder soberano e absoluto que cada um de nós possui de decidir o que é bom pra própria vida, o melhor caminho a seguir, o que serve e o que não serve. Isso combinava muito com a imagem do livre arbítrio, que também me foi ensinada nas aulas de catecismo; ministradas pelas mesmas freiras que partiram o Deus dos meus pais em três e o aprisionaram nas finas rodelas de pão seco. Então, não havendo conflito, acreditei na onipotência do meu Deus.

Era onipresente, considerando-se que é um poder soberano, cada um de nós o tem dentro de si, é óbvio que estando dentro de todos, estaria também em todos os lugares. Sendo um poder, que cada um tem em si (portanto, onipotente) e estando em todos os lugares, pois está dentro de cada um, fui aos poucos reconstruindo o Deus de meus pais, presente e poderoso.

Faltava-me saber se meu Deus tudo sabe e tudo vê.

Faltava-me conhecer a onisciência do meu Deus!
Eu precisava, nesta altura da minha vida, muito mais da sua onisciência do que de sua onipresença e onipotência.

De nada me adiantaria ter um Deus que está em todos os lugares, que pode tudo, mas que não sabe nada.

Foi então que concluí que Deus existia de fato, como me disseram meus pais, na minha mais crédula, tenra e saudosa infância.
Claro que ele tudo sabe, se está em todos os lugares, tudo vê, nada lhe precisa ser contado. Ele conhece cada pedaço de nós e sabe o que nos vai à alma, pois reside dentro de cada um.

A partir de então apostei todas as minhas fichas nesse Deus, que não foi dividido em três, mas, na verdade, era três num só! Assim resolvi também a história da imagem e semelhança.
Meu Deus tinha Cabeça, Tronco e Membros, tal qual a criatura humana criada para reinar sobre a terra e sobre todas as outras criaturas.

Na cabeça do meu Deus estava a sabedoria, a capacidade de aprender, a inteligência.
Havia descoberto o Espírito Santo! Foi Ele o primeiro a me tocar...

No corpo do meu Deus, encontrava-se o coração, que disparava de medo, de prazer, de alegria, descompassava de tristeza, se assustava diante do desconhecido, esperava pelo afago, pela concórdia, mas que também explodia de ira, inflado pela bile hepática da raiva ou silenciava assustado pelo ar gélido da tristeza, bombeado pelos pulmões cansados de aspirar a frieza da convivência humana. Este mesmo coração que se nutria da energia renal, também se intoxicava pelos rins cansados e empedrados, já incapazes de filtrar tanta podridão! Este tronco do meu Deus era, na realidade, muito parecido comigo mesma. Era Ele a minha imagem e semelhança. Encontrei-me, assim, com o Filho e achei que "ele era o cara!".

Neste meu encontro com esse Deus, veio-me a dúvida. Mas então quem é o PAI? O Soberano? O Senhor?

Aqui na minha casa, quando pequena, meu pai era aquele que tinha "pulso firme", que se preciso fosse, colocaria o "pé" na estrada. Meu pai era totalmente membros e nós habitávamos suas extremidades, e seguíamos carregados por suas mãos. Ele era a palavra e a vontade que valiam como ponto final. Ele era as “mãos-à-obra”. Por analogia, concluí que o DEUS PAI, residia nos membros, e não em outro lugar qualquer. E como meu pai fizera conosco, meu Deus carregava em suas mãos a humanidade inteira. Meu “Deus-Pai, Todo Poderoso” apresentava-se na mobilidade e na capacidade de ir e vir, de mover-se, de gerar, de manipular, tecer, manusear, deslocar, revolver, articular, moldar a terra e, posteriormente, gerar a vida com seu sopro.

Meu Deus-Pai era um artesão!

Quando me deparei com ele, avistei pés calejados que percorriam o mundo e mãos que moldavam barro.

Feito meu Deus, a imagem e semelhança de todos nós, percebi que havia invertido totalmente a história que conheci desde minha inocente e crédula infância.

Na minha trindade, Deus Pai ficava com a parte mais carnal e menos nobre, o Espírito Santo ficava onde sempre esteve, sobrevoando com sua sabedoria as cabeças entorpecidas dos ignorantes e, por vezes fazendo-as mergulhar no aprendizado, levado-lhes a luz do conhecimento, e o Filho de Deus era, este sim, o grandioso Deus do amor.
Fiz um giro em minha vida sobre meu próprio eixo e aí então tudo veio por água abaixo.

Percebi que a onipresença do meu Deus, não garantia proteção absoluta em todas as ocasiões, porque esse Deus que criei pra mim, dependia muito mais da minha capacidade de decisão do que de qualquer outra coisa.
Percebi que a onisciência do meu Deus não estava garantida de forma nenhuma, porque este meu grandioso Deus, presente em mim e em todos os outros, só sabia, de fato, a porção de cada um e precisaria da proximidade de todos e a cooperação mútua para conhecer a história na íntegra pra poder agir.

Percebi que a onipotência desse meu Deus supremo, que habita em mim, que me acompanha sempre, que me conhece e me desvenda, só tem poder até ouvir o primeiro e definitivo "NÃO! Isso é INEGOCIÁVEL".

Entendi que não posso esperar de Deus um milagre, porque sua onipotência depende da vontade de todos e nunca estive tão mergulhada na piscina do individualismo quanto agora. Nado diariamente no mar do Salve-se quem puder...
Percebi que não há como garantir a onipresença de meu Deus, porque no mundo em que vivo, está cada um por si, sem Deus por todos.
Percebi que a onisciência de Deus ficou dilacerada na medida em que sabedoria e conhecimento são coisas cada vez mais secretas e menos democráticas. Meu Deus só pode conhecer a parte que me cabe e a parte do meu irmão deve permanecer lá, confinada com ele, em sua própria angústia e autocomplacência. Protegidas secretamente. Vergonhosos segredos guardados a sete chaves.

Foi assim que aquele meu Deus, tão coerente com meu Deus da infância e tão semelhante aos Deuses da filosofia, que me atropelaram pela vida a fora, foi deixando de existir, foi desintegrando em sua ignorância, sua cegueira e sua fraqueza, todas tão humanas.

Foi assim que meu Deus admirável e soberano, sentou-se à mesa do banquete antropofágico e ajudou a dilacerar vidas, impotente e inerte diante de um outro Deus, menor em caráter, mas maior em articulações e poder. Foi assim que aquele de quem se esperava tudo sucumbiu às determinações de um deus rasteiro, conchavista e traiçoeiro.

Foi assim que minha fé ruiu.
Foi assim que minha esperança despedaçou.
Foi assim que minhas vitórias se voltaram contra mim com a força de Homéricas derrotas, resultantes de trabalhos também Homéricos, muito pouco frutíferos e nada honrosos.
Foi assim que vi outros Deuses ascenderem ao panteão dos poderosos, subjugando aqueles de quem se deveria esperar força e coerência.

Foi assim que uma nova casta de divindades surgiu, recompondo uma metafísica perversa onde quem pode mais realmente chora menos e salve-se quem puder. Perfil totalmente coerente com esse novo Deus que surge das profundezas obscuras para me assombrar. Um Deus que se alia aos fracos de caráter, que conluia com desonestos e pune os enfraquecidos faladores de verdades...

Por força dessa mitologia contemporânea, curvo-me às evidências, cedo minhas armas, abandono minha batalha e concluo que meu Deus morreu.

Aquele "ser superior", que foi criado para governar as criaturas, matou o Deus que lhe deu vida. Mata todos os dias a possibilidade de ressurreição.

Eu fico aqui, prostrada diante de tanto desmando, esperando o dia em que meus pais voltem a me contar histórias de lealdade, dignidade e reverência ao que é correto e bom.

Meu pai já morreu e minha mãe completou 70 anos há poucos dias.

Talvez eu ouça tais histórias da boca deles numa outra oportunidade, quando me for concedido nascer novamente.

Espero nascer de novo, num tempo em que o homem, displicente zelador do mundo, decida zelar pelo que recebeu do Pai, em vez de simplesmente levar vantagem com a herança recebida de bandeja.

Amém.