quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Dia 14 — Fecundação

Diário da CPTM
365 dias de uma passageira
07/12/2016


Sabe aquela aula de biologia em que você aprendeu como começa a vida?
Aquela aula que diz que a vida inicia com uma história de vitória, que a corrida pela fecundação resulta da luta pela sobrevivência e que o espermatozoide mais forte e capaz é quem vence os obstáculos com sua resistência e chega à frente dos demais e fecunda o óvulo?
Então, esta luta não acaba nunca...
Aliás, ela só aumenta!
A fecundação é apenas um presságio dos dias vindouros, e aqui, em especial, tratarei da sobrevivência dos usuários da CPTM!
Resistir, superar e sobreviver são os lemas do cidadão que anda de trem.
E a fecundação acontece em cada estação, a cada parada da composição na plataforma.
Estranho?
Veja bem:
O princípio da fecundação consiste em um receptáculo (óvulo) que, quando maduro, é liberado de seu ambiente de reserva (ovário) e conduzido por uma via segura (trilhos) até a região da fecundação (útero).
Ali, acolhido pelo órgão que o protegerá durante todo o processo reprodutivo, aguardará pela outra metade da fecundação, o espermatozoide.
O espermatozoide vem, invariavelmente, de um outro corpo, daí a natureza sexuada do processo reprodutivo.
Adentra a estrutura acolhedora através de um duto, que o conduzirá ao óvulo.
Mas, não virá sozinho.
Virão aos milhares, apressados, dispostos e competitivos. Cheios de pressa e no afã de atingir em primeiro lugar o objetivo final: o óvulo.
Mas, ao chegarem, perceberão que a chegada é apenas o início do drama. Estarão ali, aos milhares, cercando uma estrutura na qual, visivelmente, não haverá lugar para todos.
A chegada deveria ser o ponto final. Mas o ponto final é apenas o começo do drama.
Não bastou ser o mais ágil, nem o mais rápido, nem o mais forte.
O espermatozoide vitorioso deverá contar, também, com a sorte.
Sim, porque aquele que chegou primeiro pode ter chegado no ponto em que não há acesso ao núcleo do óvulo. Ficará ali, se debatendo contra a membrana do óvulo sem conseguir adentrá-la
Há apenas um ponto de acesso ao núcleo do óvulo e apenas um: o mais ágil, mais rápido, mais forte e mais sortudo conseguirá entrar.
E a junção dessas qualidades não se dará de forma diretamente proporcional à grandeza de cada uma delas. A combinação se dá levando em conta o fator sorte.
Dentre aqueles que atingiram o óvulo primeiro (mais ágeis e mais rápidos) haverá aqueles que conseguirão se sobrepor aos demais (mais fortes) e, dentre estes, haverá aquele que estará no exato ponto de acesso, através do qual o centro do óvulo será coroado pelo núcleo masculino vencedor.
Sendo assim, o espermatozoide fecundador, considerado o mais forte, ágil, rápido, pode ter sido apenas o mais oportunista e beneficiado pelo beneplácito do acaso...
Tudo isso me aconteceu hoje! Novamente. Como acontece todos os dias.
Aconteceu comigo, nesta minha rotina de passageira, desde que saí de casa em direção à estação.
Caminhei rapidamente até chegar à catraca, onde outras pessoas já se encontravam perfiladas, acotovelando-se para entrar.
Adentrei a estação e me posicionei, diferentemente dos outros dias, em um outro ponto da plataforma. Meu objetivo era descer já ao pé da escada rolante da Estação Brás, para evitar o corpo a corpo do desembarque.
E lá vem ele. Não o meu querido trem de ferro diário! Vinha, lá longe, um trem cargueiro que, quando surge no horizonte, é certeza de atraso na viagem prevista em pelo menos 15 minutos.
Estes quinze minutos são suficientes para triplicar a quantidade de passageiros na plataforma à espera do embarque.
E assim foi: 15 minutos de espera e acúmulo de passageiros.
Eu ali, em um outro ponto da plataforma, diferente do habitual, sem a certeza absoluta de que ali se abriria uma porta. Se meu cálculo estivesse errado, não teria a mínima chance de viajar sentada até o Brás.
Passados 15 minutos, eis que lá vem o tão esperado coletivo.
Trepida sobre os trilhos, garboso e reluzente.
Eu, sem saber se minha posição na plataforma estava correta, vejo formada atrás de mim uma multidão que foi se posicionando tendo a mim como referência, já que me posicionei antes de qualquer outro passageiro naquele ponto de embarque.
E lá vem o trem, saído de seu ambiente de reserva (garagem), "madurinho da Silva", pronto para acolher os vitoriosos que conseguirem adentrar no ponto de acesso ao seu núcleo. Vem conduzido por uma via segura (trilhos), até a região mais fecunda da estação (plataforma).
E começa a guerra pela sobrevivência, onde cada um, a postos, pretende fazer valer sua força, sua agilidade, sua capacidade de levar ao interior do trem seu material humano.
Antes que o trem estacionasse o movimento na plataforma começou. Fomos ficando cada vez mais compactados, tendo a borda da plataforma como delimitador.
Quem disse que um embarque não é um exercício de sobrevivência nunca viajou em um trem da CPTM.
O trem, despontando no horizonte, agita a tranquilidade da plataforma. As bolsas, penduradas à tiracolo, escorregam dos ombros para as mãos. O espaço existente entre os pacientes-passageiros que aguardam o embarque diminui, assim como diminui, também, a paciência. A agitação faz os corpos se aproximarem até parecerem um e a movimentação, antes independente, se torna grupal. É possível, nestas situações, fazer deslocamentos indesejados, na direção contrária a que se quer ir e, estando ali no aglomerado do embarque, é impossível sair.
A corrida pela sobrevivência se faz cada vez mais presente até que o trem estaciona.
São alguns segundos até que as portas se abram. A movimentação dos corpos se assemelha à luta pelo primeiro instante de vida fecunda em um útero.
Ali vencerá não o mais forte, apenas. Não o mais rápido, apenas. Não o mais ágil, apenas.
Ali vencerá aquele que tiver conjugadas todas estas características de forma satisfatória.  Aquele que se mostrar suficientemente capaz de penetrar a estrutura de forma segura.
Os instantes que antecedem a parada total do trem são de expectativa: ele reduz sua velocidade gradativamente e aos poucos é possível perceber se o ponto de espera coincidirá exatamente com o ponto de abertura da porta.
Às vezes o trem para e as portas não se abrem. Aí a agitação aumenta ainda mais. O vão de aproximadamente 15 centímetros existente entre o trem e a plataforma transforma-se em uma falésia abissal. Nestas situações o risco é ainda maior quando o trem, depois de estacionado, com as portas ainda fechadas e os pontos de embarque definidos, em torno dos quais se aglomeram os pacientes-passageiros-impacientes; resolve fazer ainda um último deslocamento de centímetros até atingir o ponto exato de embarque.
Pode ser a morte. Ou pode ser a sorte...
Hoje foi assim!
Embarque estação Brás — Integração CPTM-Metrô
 Estávamos ali, na luta pela sobrevivência. Embarque matutino. Com predominância de homens.
Algumas mulheres, mas os homens em maioria. Mais altos, mais fortes, mais impacientes e apressados. Todos compactados em torno da porta. O trem estacionado. As portas fechadas...
Como eu havia mudado meu ponto de embarque habitual, acabei calculando mal o ponto de acesso ao interior do trem. Havia ficado próxima à porta, mas na posição em que o trem parou fiquei distante do ponto de abertura. Não haveria chance de entrar e sentar....
Já conformada com a expectativa de viajar em pé, vejo o trem se mover, pouco menos de 40 centímetros.
De repente, posiciona-se à minha frente o centro da porta, suas borrachas pretas de vedação situadas exatamente à minha frente, alinhadas com o septo do meu nariz. Numa posição ideal, num ponto equidistante entre as extremidades esquerda e direita do meu corpo. Exatamente no centro.
A movimentação natural dos passageiros na plataforma exigiu de mim uma resistência maior, para que o ponto ideal em que me encontrava não fosse ocupado, no último instante, por um homem, mais forte, mais apressado, mais imperativo do que eu.
Eis que a porta se abre e a movimentação da plataforma me propulsiona para dentro do trem.
Uma movimentação caótica, tumultuada, conflituosa.
Fui a primeira a entrar e em segundos estava eu ali, vitoriosa, sentada no banco duplo lateral, na janelinha. Meu lugar preferido!

Hoje, nessa luta diária pela sobrevivência na plataforma, não teve mais forte, não teve mais rápido, não teve mais ágil.
Aquele grande útero que me conduz diariamente da estação Ribeirão Pires até o Brás, hoje, foi fecundado por um cromossomo Y, que por um golpe de sorte encontrou o ponto de acesso antes que todos os outros, a despeito da força, do tamanho e da agilidade.
Hoje eu fui o espermatozoide mais capaz do que os demais...
Sorte!




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