terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Enforca-gato



Inspirada 
em fatos reais

Lá estavam eles, sempre juntos. Pipas ao vento, cerol na linha e energia abundante para subir e descer a rua, incansavelmente, buscando a melhor corrente de ar para fazer flanar seus losangos coloridos, adornados por longas e flutuantes rabiolas.
Mas hoje foi diferente: chegaram mais tarde. Trouxeram nas mãos, além das pipas, uma raquete com poucos fios, amarrada a um bambu. Eu, da minha varanda, observava.
O menor pegou a vara ponteada pela raquete e a esticou até a forquilha da árvore. Chacoalhou a raquete. De lá caiu um ninho. Os dois se divertiram esmagando os ovos com os pés. No final da tarde um casal de pais sobrevoava a árvore piando desesperadamente.

Eles voltaram no dia seguinte. Dessa vez nem trouxeram as pipas. 
O maior ficou na retaguarda, enquanto o menor subiu no caixote, apoiado no chão pelo lado mais estreito. Novamente, chacoalhou o galho derrubando outro ninho. O maior se incumbiu de pisotear os ovos.

No terceiro dia esperei por eles camuflada entre os arbustos.
Os dois chegaram e balançaram mais uma árvore. No ninho caído não havia ovos mas ouvi piados suaves e desesperados. O menino maior correu, levando consigo sua presa-troféu.
O menor, distraído, olhava o ninho e não percebeu minha aproximação. Extraía a penugem fina do animal, ainda cego e indefeso, agonizante e quase morto.
Era um predador! Como uma mãe que perdera seu terceiro ninho, não resisti: engalfinhei meus cinco dedos nos cabelos loiros, finos e lisos do garoto. 

Dei-lhe um tranco vigoroso nos cabelos e ele, apavorado, com o pássaro depenado nas mãos, silenciou. Não deu um pio.
O imobilizei com um enforca-gato, juntando suas mãos à frente do corpo para que nunca mais derrubasse ninhos à frente da minha varanda.

Recolhi caixote, bambu, raquete e o ninho. O pássaro morto coloquei dentro de um saquinho branco de tecido. Levei tudo comigo como provas. 
Decidi escoltá-lo até seus pais e ele, passivamente, me indicou um caminho. Um sobe e desce interminável de ladeiras, vielas estreitas sem saída, ruas sem casa.
Chegamos em uma praça onde idosos jogavam dominó e cães de rua dormiam em papelões à porta do banheiro público. Pequenos quiosques vendiam iguarias fuleiras: coxinhas gordurosas e frias, espetinhos ressecados, refrigerantes quentes, sorvidos desesperadamente pelos garis acalorados.

O olhar desamparado do garoto revelava tudo: estava perdido!

Coloquei-o sentado em um banquinho de cimento, com os braços estendidos sobre a mesinha, as mãos onde eu pudesse ver e o interroguei por horas: queria o endereço de seus pais. 

Sobre a mesinha de alvenaria deixei meu celular e esperei que ele telefonasse pedindo socorro. Ele permaneceu imóvel.

Os transeuntes, passavam por nós indiferentes.

E fui desistindo dele. Desisti de interrogá-lo e ele também desistiu de si mesmo. Permaneceu solenemente calado. 

Deixei-o lá na praça desconhecida e com suas bugigangas depositadas sob seus pés. Me afastei sem olhar pra trás. Coração acelerado e já sem ar.

Nesse instante meu relógio despertou, acordei e fui nadar.

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