sexta-feira, 21 de março de 2014

Círculo vicioso do Silêncio, Parte II: A Vantagem, o Delito e nosso Senso de Justiça posto em Xeque

silêncio 
si.lên.cio 
sm (lat silentiu1 Ausência completa de ruídos; calada. 2 Estado de quem se cala ou se abstém de falar; recusa de falar. 3 Abstenção voluntária de falar, de pronunciar qualquer palavra ou som, de escrever, de manifestar os seus pensamentos. 4 Taciturnidade. 5 Discrição. 6 Interrupção de um ruído qualquer. 7Abstenção de publicar qualquer notícia ou fato, de comentar o que é geralmente sabido. 8 Descanso; estado calmo; estado de paz, de inação. 9 Interrupção de correspondência epistolar. 10 Mistério, segredo. 11 Ausência de menção; omissão em uma relação verbal. 12 Suspensão que faz no discurso o orador ou a pessoa que fala. 




De repente você se depara com alguém levando vantagem em algo que deveria beneficiar igualmente a todos.
Aí se lembra que em muitos casos a vantagem não passa disso: apenas uma vantagem. 
Mas, em casos mais extremos a vantagem supera os limites razoáveis ( se é que isso existe...), transformando-se em uma ilegalidade.
Tudo aquilo que transita desde uma simples vantagem até uma ilegalidade se configura em delito.
E aí está você ali, diante de uma situação repulsiva, indesejada, vergonhosa.
E está você ali, ser social, cidadão que convive coletivamente com seus iguais, seus pares, esbravejando do alto do seu direito de discordar, de se revoltar, de se posicionar contra tudo aquilo que está errado.

Neste momento, eu aqui do meu esconderijo, me ponho a pensar nas minhas aulas de português no ginásio, na escola de freiras...
Lá, meu professor de português ensinava que os pronomes pessoais dividem-se em três pessoas do singular "eu", "tu", "ele (a)" e três pessoas do plural "nós", vós", "eles". E este foi o melhor resumo que eu já tive daquilo que é preciso para viver de forma honesta durante toda a minha vida. 
Mesmo que de forma atribulada, entender corretamente a aplicação destes três pronomes e seus derivantes possessivos: meu, teu dele, nosso vosso, deles, é o suficiente para saber conviver de forma decente, respeitando a todos, mesmo que este respeito quando oferecido, e que por direito pode ser cobrado na mesma medida, inflame de forma irreversível alguns, repugne outros e envergonhe outros tantos.

Todo este prólogo para apresentar as seguintes questões: 
— Temos todos por certo que levar vantagem sobre outrem é algo que não deveria fazer parte do rol de comportamentos corteses entre membros de uma sociedade. Correto?
— Temos por certo que a sociedade tem o direito de se revoltar e se insurgir contra todo aquele que secretamente se favorece de algo, de forma delituosa. Correto?
— Temos por certo que a única forma de garantir uma convivência civilizada no seio da sociedade é evitando que vantagens escusas e delitos inaceitáveis, mesmo que pequenos, permaneçam silenciados e impunes. Correto?
— Temos por certo que a justiça aí está para se fazer valer sobre todos aqueles que delinquirem e a não aplicação da justiça provoca em todos nós uma sensação de desajuste social difícil de digerir. Correto?
— Temos claro que a não aplicação da justiça é o maior alimento para os desajustes sociais com os quais nos deparamos e contra os quais no revoltamos. Correto?
— Temos por certo que todos nós, em algum momento, já fomos assolados pela sensação de termos sido injustiçados, punidos de forma incorreta ou desleal. É difícil digerir o gosto amargo que fica na boca e nos causa profundo desconforto, quanto mais quando a punição injusta vem acompanhada pelo silencio obrigatório que nos é imposto por nosso julgador. Correto?
Até aqui, estamos de acordo.
Porém, agora, pergunto eu:
Temos por certo que todas estas afirmações foram conjugadas, invariavelmente, em primeira pessoa?
Temos claro que somente nos voltamos contra atos injustos quando esses atos incidem contra nós ou quando a iminência de uma injustiça nos coloca em risco?

Mas, e se a justiça, ao se fazer valer, bater à nossa porta não para nos proteger, mas para nos cobrar?

Pergunto eu: Como agiríamos se o delinquente em questão fosse um amigo próximo, um filho, um afilhado, um conhecido, um integrante do nosso grupo de convivência cotidiana?
Qual seria a nossa relação com a justiça quando o delito, cuja ação costuma ser sempre conjugada em terceira pessoa ( ele, eles, deles ) passar a ser conjugado em primeira pessoa ( eu, nós, meu, nosso), nos transformando em agentes da incorreção que apontamos nos outros?
Como agiríamos se o delinquente fosse o meu amigo, não aquele estranho distante de mim; se o cara que leva uma vantagem que muitos desconheciam não for aquele deputado do congresso, tão distante de mim, mas for o meu colega de trabalho, que se senta na cadeira ao lado da minha? Como agir corretamente se a descoberta de uma fraude, pequena que seja, for imputada ao meu amigo de academia, ao meu colega da mesa do refeitório, ao meu sobrinho querido, ao meu vizinho de porta, ao meu filho, meu irmão, meu melhor amigo ou meu companheiro?
Será que os laços afetivos, de simpatia, de proximidade ou consanguinidade podem alterar tanto o nosso senso de justiça a ponto de absolver um delito somente pelas afinidades com o delinquente?

E o que é um delito?

Segue aí a definição do Michaellis
delito 
de.li.to 
sm (lat delictu) 1 Fato ofensivo das leis ou dos preceitos do direito e da moral; crime, culpa, falta. 2 Infração de preceito ou regra estabelecida. Flagrante delito: delito quando o agente que o pratica é surpreendido.

Se nosso senso de justiça pode ser abalado por esta proximidade com o delinquente, com que autoridade levantam-se aqueles que compram carteiras de habilitação, ou aqueles que pagam propinas para o guarda de trânsito, ou os que furam fila nos bancos, ou ainda os que ocupam vagas reservadas, e aqueles que se favorecem de informações privilegiadas, de indicações e de benefícios que não chegam aos demais, que dão um jeitinho para acertar um combinado, que fazem um acordo secreto para conseguir algum benefício, que se favorecem com pequenas migalhas do dia-a-dia, que ninguém sabe, ninguém viu e que não vai prejudicar ninguém?

E quantos de nós, ferrenhos esbravejadores em defesa daquilo que é correto, já não usamos de um ardil qualquer para levar vantagem em alguma situação, mesmo que um tola e corriqueira?

Quem disse que isso não vai prejudicar ninguém ?
Tanto a ação indevida quanto o silêncio cúmplice prejudicam a todos!
A infração se faz com a ocasião...
Quanto menor a chance, menor delito.
Quanto maior ocasião, maior o ladrão!

Com que autoridade reclamamos quando a justiça não é aplicada na terceira pessoa (eles, deles), tão distante de nós, se nos calamos quando a mesma justiça é condescendente sobre a primeira pessoa ( eu, meu, nosso)?

Por que tendemos a acreditar que nossos delitos são menores, menos importantes ou impactam menos a sociedade do que os delitos cometidos por terceiros e que, bem por isso, merecem ser relevados, perdoados ou escondidos e silenciados, contando com a cumplicidade daqueles que nos são próximos?

Por que acreditamos que nossas falhas merecem o julgamento condescendente enquanto as falhas de outrem merecem o rigor da lei?

Por que acreditamos que no nosso caso as ações somente se conjugam em primeira pessoa e que nunca seremos a terceira pessoa de ninguém?

Eu, quando falho, atinjo alguém!
Eu, quando me favoreço de algo, me favoreço em prejuízo de alguém
Eu, quando cometo um delito, prejudico alguém.
Sou neste caso a terceira pessoa que infla o desejo de justiça de alguém, que espera a punição da minha falha, na justa medida, tanto quanto esbravejo contra os outros.

Portanto, acredito que a falha esteja nas aulas de português...

Em algum momento alguém esqueceu de nos ensinar que não é possível reivindicar benefícios somente em primeira pessoa, seja ela no singular ou no plural. 
— Eu, meu, pra mim!!!!
— Nós, nosso, para nós...

Assim como não é possível estabelecer regras de conduta somente em terceira pessoa.

Se estes pronomes somente forem utilizados desta forma a vida nunca terá conserto.

É preciso também conjugá-los de forma reflexiva, para proferir deveres. Mas não os deveres pequenos impostos aos vassalos obedientes e passivos diante de seus suseranos. Mas sim os grandes e nobres deveres voluntários, que cada um profere contra si mesmo, como um código de conduta que cria indisposições, mas que protege, que antipatiza, mas resguarda; que blinda contra os ataques. Que cria uma madeira que cupim não rói!

Deveres que deveriam ser conjugados por todos aqueles que se colocam de forma responsável diante da vida.

Existem os outros, que como nós, também se inflamam diante da injustiça.

Portanto, seria bom que começássemos a refletir como seria se nos deparássemos com esta situação: E se os delitos, contra os quais tanto nos voltamos, de repente começassem a ser descobertos e confirmados dentro da nossa zona de conforto, próximos de nós, cometidos por mim ou por pessoas com as quais convivo de forma próxima, amigável e até mesmo afetuosa?

Somente esta reflexão já seria suficiente para por em Xeque o nosso senso de justiça.
Via de regra o delinquente padrão, contra o qual muitos de nós esbravejamos com veemência, é o menor sem berço que nunca conhecemos, é o especulador financeiro com quem nunca convivemos, é o espertalhão que se favorece dos amigos influentes, com quem não possuímos nenhum contato.

Mas e se fosse um amigo, um parente ou um de nós?

Será que nosso senso de justiça sobreviveria à esta situação ou preferiríamos adotar o antigo costume de matar aqueles que nos trouxerem más notícias,  mesmo que verdadeiras?

Enquanto esta reflexão, silenciosa e individual, não acontecer, seremos sempre reféns de nós mesmos. De tudo aquilo que precisamos esconder, de tudo aquilo que seria melhor esquecer, de tudo aquilo que deveria ter ficado no passado, calado.

Mas o passado costuma nos visitar com muita frequência, cobrando de nós o preço do nosso silencio diante de uma irregularidade cometida por um de nós, mesmo que pequena e involuntária. É o silêncio perpétuo em cumplicidade com nosso próximo. É o preço da nossa liberdade que aqui, sem dúvida, é a eterna vigilância.
A vigilância que cria suspeitos, que alimenta inimizades, que não liberta de fato ninguém.
E os que mais vigiam, que mais constrangem o próximo são aqueles que mais têm a esconder...

O silencio cúmplice que é imposto pela sociedade para proteger o próximo que convive conosco cotidianamente, e cujo delito que deve ser esquecido, muitas vezes se converte em luto. Em suas fases o luto caminha pela negação, pela raiva, pela negociação, pela depressão e por fim, pela aceitação.

Devemos aceitar a morte do eu, do meu, do nosso para que algo maior se construa, em favor de todos. Algo que venha trazido pelas mãos da justiça de fato. Aquela que cobra na justa medida as reparações pelos danos causados, silenciosos ou não!

Estacionar em qualquer uma das fases que antecede a aceitação do luto é uma demonstração de imaturidade que nem as aulas de português nem a psicanálise conseguiram corrigir: nunca, em nenhuma situação, a proteção ou o interesse individual deve se sobrepor ao direito coletivo à informação.

Nem diante de uma injustiça.
Nem diante do constrangimento.
Nem diante do medo.
Nem mesmo diante da morte.

Uma pena que, na vida cotidiana, as coisas não sejam assim!
Afinal, quem, em sã consciência, quer se indispor com seus pares?...

Neste caso, pra ficar bem com todos, até vale um "discursinho" de meias verdades ou uma "injustiçazinha" de vez em quando, afinal, isso não vai fazer mal a ninguém, não é?

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