quinta-feira, 2 de maio de 2013

José Francisco e Otaviano










Sexta Feira, 07 de Maio de 2010, 15h 20min.
Antevéspera do dia das Mães.
Plataforma 11, Terminal Rodoviário do Tietê, São Paulo.
Ônibus Lotados...




Chegamos nós três ao mesmo tempo no balcão da Viação Cometa, na Plataforma 11, com passagens para embarque sentido Jundiaí.
Saída Prevista: 15h30min.
Três Passageiros no balcão: Eu, uma mulher e um homem. Éramos três desconhecidos.
No balcão, apenas duas canetas.
- Por favor, preencham suas passagens! Ditava o motorista, postado à porta do ônibus, verificando bagagens, passagens, documentos, liberando passageiros para tomarem seus lugares nos assentos numerados...

Homem: - Dona, o que eu escrevo aqui?
Mulher: - Seu nome, documento e endereço, não está vendo escrito aí?
Homem: - Mas eu não sei!
Mulher: - Como? Você não sabe seu endereço?
Homem: - Não, é que...
Mulher: - Ah, essa é boa!

E a mulher se retira, apressada e arrogantemente, do alto de seu sapato plataforma e sob seu cabelo cheio de laquê!
Ela era baixinha, mas tinha um rei tão grande na barriga que, obrigatoriamente, tinha que usar plataforma e um cabelo bem estruturado, tudo isso para parecer maior do que realmente era! — NANICA!

Ficamos nós dois, eu e o Homem, lado a lado no balcão.
Eu, ele e as duas canetas...
Eu, que estivera ali ao lado, calada, preenchendo minha passagem, não pude deixar de ouvir o diálogo entre os dois...

Percebi o que havia acontecido, intuí o motivo, mas não quis constrangê-lo com minhas conclusões.
 - Lembrei do Seu Otaviano!

Eu: - Moço, precisa de ajuda?
Homem: - É que tem que escrever aqui o endereço, e eu não sei!
Eu: - Mas o senhor pode por só o telefone e o número do documento.
Homem: - A senhora me ajuda, dona?
Eu: - Claro, me empreste seu documento.
Homem (cochichando): - É que eu não sei ler.

No documento, a vexatória inscrição “ANALFABETO”, carimbada acima da assinatura, uma sucessão de garatujas ilegíveis...

- Lembrei do Seu Otaviano!

Seu Otaviano era praticamente da família, se eu for considerar que minha família sempre foi formada mais pelos agregados do que pelos integrantes natos.
Ele era amigo do meu pai desde 1958, ano em que meus pais se conheceram.
Seu Otaviano era baixinho, assim como o Homem do Terminal Rodoviário, era baiano, assim como o Homem do Terminal rodoviário, era humilde, simples e gentil, assim como o Homem do Terminal Rodoviário. E era analfabeto, assim como o Homem do Terminal Rodoviário.
Aliás, nem mesmo sei por que falo do Seu Otaviano no passado. Ele é tudo isso até hoje. Baixinho, baiano, humilde, simples e gentil.
Esqueci de dizer que ele tem os olhos azuis mais sorridentes que eu já vi até hoje. Ele, apesar de ter mais de 70 anos, chama minha mãe de mãe e até hoje não consegue pronunciar direito meu nome. Ele me chama de Tanin, minha fia!
Esqueci também de dizer que Seu Otaviano é ALFABETIZADO! O analfabetismo ficou no seu passado.
Esqueci também de dizer que o Homem do Terminal Rodoviário tem um nome, que ele não sabe escrever, mas que eu não vou esquecer nunca: José Francisco.

Não vou esquecer porque o analfabetismo me acompanha desde que eu nasci, afinal, nasci analfabeta!
Analfabetos também eram muitos dos agregados que passaram pela vida da minha família, assim como Seu Otaviano. Fico feliz em dizer que alguns deles foram alfabetizados pelas minhas mãos.

- Mas o Seu Otaviano foi especial...

Ele foi o primeiro e se alfabetizou junto comigo, quando entrei no 1.º ano da escola.
Tínhamos o mesmo material: um caderno brochura pra cada um, um lápis n.º 2, uma borracha branca e um caderno de caligrafia. A tradicional cartilha “Caminho Suave”. Esta era única, mas utilizávamos conjuntamente quando sentávamos à mesa da copa aqui de casa pra fazer a lição que a Madre Adeodata havia passado para casa.
E foi assim, fazendo minha lição de casa comigo, copiando as letrinhas que eu desenhava no caderno de caligrafia que o Seu Otaviano aprendeu a escrever e, juntando as letras coloridas da cartilha, aprendeu a ler. Assim ele se alfabetizou. E eu também!
Ele era baixinho, tinha quase a mesma altura que eu, parecíamos mesmo duas crianças aprendendo o ABC.

Seu Otaviano alfabetizou-se pra poder tirar o Título de Eleitor e votar no meu pai, candidato a vereador na cidade pela 3.ª vez. Nas duas vezes anteriores ele não havia votado.

Trabalhou como cabo eleitoral, panfletou, fez boca de urna, mas não entrou pra votar. Foi barrado no seu direito de cidadão assim como o Sr. José Francisco quase foi barrado no acesso ao ônibus, por não saber preencher sua passagem.

E eu, sem ter consciência disso, na hora em que os fatos aconteceram — quando criança, por ser muito criança, no terminal por estar com pressa e querer embarcar logo— já que somente nós dois ainda estávamos de fora do ônibus; acabei contribuindo para que a porta de ambos não se fechasse.

Lembrei tanto do Seu Otaviano desde sexta-feira última que hoje, ao voltar pra casa, novamente vindo de Jundiaí, o vi de longe passando com seu terno cinza, seu chapeuzinho na cabeça e sua Bíblia em baixo do braço.

- Vinha do culto!

Que bom que ele pode ter na sua cabecinha branca as palavras de Deus. Melhor ainda é que as palavras de Deus não precisam entrar pelos seus ouvidos, distorcidas pelas bocas de terceiros, podem entrar diretamente pelos seus olhos azuis, hoje paramentados com um par de óculos, já que o tempo deixou, também ali, as suas marcas...

- Quanto ao Senhor José Francisco? Bem, ele embarcou em mais uma viagem, naquela antevéspera de dia das mães...

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