sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Claustro


Dedicado à Equipe de Médicos Pneumologistas do Hospital e Maternidade Brasil
Dra. Cristina Mendonça, Dra. Verginia Masini, Dr. Marcio Neis
09 à 16/08/2019



Aqui estive nos últimos sete dias. Não sei ao certo porque vim parar aqui. Por quê, num hospital? Mas, aqui estive. Aqui permaneci, desejando sair, blasfemando contra a privação de liberdade.

Descobri, nestes sete dias, que a liberdade é o bem mais precioso que se pode ter.

Nem mesmo a necessidade de boa saúde supera a necessidade de liberdade. Não pra mim!
Para mim a liberdade é o combustível da saúde!

Fui acometida de um quadro alérgico agudo, de origem inespecífica. Um Bronco-espasmo. Começou com um pigarrinho insignificante que insistiu em ficar grudado na minha garganta e descer para meus brônquios. Desenvolvi um quadro crítico de tosse provocado pela diminuição da luz dos meus alvéolos (em português: os alvéolos se fecharam). Meus pulmões queriam expulsar a secreção para poder oxigenar o sangue e essa tentativa de expulsão se traduzia em tosse convulsiva, constante, ruidosa, dolorida e acompanhada de miados de uns 200 gatos que pareciam ter fixado residência no meu o peito.  Eu inspirava e, ao expirar começava a miadeira... Um chiado inicialmente ruidoso. Depois, vinha um silvo e, aí, a tosse: barulhenta, carregada e sem nenhuma expectoração. Vez por outra saía um catarrinho verde. Uma trisca de catarro duro e concentrado de cerca de 3 milímetros quadrados. Um nada, verde e duro, que saía a marretadas, depois de horas consecutivas de tosse extenuante. Foram exatamente 3 porções iguais de catarro, de minúscula dimensão, que aquela tosse de 11 dias consecutivos conseguiu expelir. Nem um milímetros quadrado a mais.

Eu me sentia uma verdadeira usina de muco verde, que, quando saísse, sairia fazendo alarde e provocando urros de comemoração

Eu tinha tantos planos praquele catarro! Pelo barulho que fazia no meu peito, imaginei que,  quando começasse a se desprender, seria um festival com fogos de artifício. Imaginava que sairia aos montes, em quantidade transbordante. Queria encher a pia, colecionar montinhos, fotografá-los e encaminhar as fotos pros amigos através do whatsapp. Queria contar minhas façanhas de escarradeira-mór após a minha alta. Queria contar vantagem, fazer drama, encenar a ação: 
"Aí eu inspirei, expirei, tossi, foi aquela barulheira. Corri pra pia. Cuspi. Ahahaha!!! Sai, catarro, deste corpo que não lhe pertence!"
Queria me sentir orgulhosa dos meus escarros. Que nada... Não teve foto enviada pelo zap. Não teve fogos de artifício. Não teve cena dramalhão... Meu catarro não quis sair pela minha boca. Fui um verdadeiro fracasso em matéria de expectoração!



Foi assim durante 11 dias consecutivos (2 dias que antecederam minha primeira ida ao PA, 5 de tratamento em casa e os demais no hospital).

Somente no quarto dia de internação é que minha tosse começou a cessar. Mas o chiado, o miadinho no peito e a catarreira permaneciam comigo.

Altas doses de corticóide injetável, 2 antibióticos, 6 inalações diárias com broncodilatador (e aquela taquicardia insana que seguia as inalações), protetor gástrico, fisioterapia respiratória, 3 horas diárias ligada a aparelhos que injetavam, sob pressão, oxigênio nos meus pulmões para abrir,  a forceps, os alvéolos retraídos e limpar os brônquios da secreção.

Monitoramento cardíaco e arterial a cada 4 horas por conta dos broncodilatadores...

Permaneci sozinha durante a maior parte dos 7 dias. Douglas esteve comigo durante algumas horas de cada um desses dias. Mas ele também foi atropelado...

Gui, num acidente, no treino de futebol, no momento em que foi liberada minha internação, precisou imobilizar a mão. Douglas me colocou no quarto e correu pra acudir o Gui. Mais hospital pra ele naquele dia... Foram dois hospitais diferentes, em duas cidades diferentes, num intervalo de 12 horas. No dia seguinte foi ele quem precisou correr para o dentista. Além de, em casa, termos o cachorro doente precisando da rotina de medicamentos e atendimento veterinário. Uma mudança de casa para organizar  e um show novo para ensaiar. Tudo nestes meus 7 dias de claustro.

Me pergunto como ele deu conta.
Me pergunto como eu dei conta...

Aqui no quarto, entre um medicamento e outro, uma sessão de fisio e outra, o fone de ouvidos na orelha pra aprender a ópera e os apetrechos de fono todos à mão pra tentar ressuscitar a voz, tão abalada com todo esse trauma brônquio-pulmonar. Desafio: cantar dois dias após a alta. Corrida de obstáculos com cronômetro acionado. Fui eu comigo mesma na disputa... 100% de chances de vitória. Uma barbada!

Presa e na escuta. Foi assim que me senti durante estes 7 dias.

Ouvido aguçado... Fui capaz de identificar tudo o que acontecia nos corredores. Sei a cadência dos geradores, identifico quais carrinhos trafegam pelo andar. Fiz amizade com várias pessoas estranhas que entraram na minha intimidade com apenas um leve "toc-toc" à porta do quarto.

Fui servida religiosamente, estabeleci rotina, descansei, pensei... Pensei... Pensei...

Aproveitei estes dias pra conversar comigo. Fiz uma checagem de expectativas e possibilidades.

Joguei muita coisa no lixo. Coisas materiais, nem tantas... Mas coisas emocionais. Memorias inúteis, sentimentos vencidos, escutas infelizes.

Meu pulmão me aprisionou para que eu pudesse me libertar.

Me libertar de culpas que não são minhas. Me libertar de revezes que não provoquei. Me livrar de pesos que não preciso carregar.

Meus ouvidos ouvem. E meus pulmões arquivam. Deduzi isso.

Nesses 7 dias descobri que gosto de estar sozinha, porque é a única forma de me encontrar com a saudade, sentimento que quase nunca me visita...

Gosto da minha companhia e percebi que ter oportunidades de permanecer sozinha me organiza internamente.

Gosto de estar só. Mas não gosto de estar tolhida, presa. E isso me fez mal.

Sairei daqui procurando reservar meus ouvidos apenas para minhas reflexões internas. Não quero mais o mundo externo, e adoecido, me invadindo. Sou sã e quero preservar isso. Não quero mais receber, pelos ouvidos, questões, dramas, dilemas que não me digam respeito e que caem sobre mim com o peso de uma bigorna.

Fiquei presa por 7 dias e ninguém precisou, indispensavelmente, de mim. A não ser eu mesma.

Esta consciência me libertou.

Sou livre, agora, pra cuidar de quem me ama e me valoriza, pra caminhar junto, com quem me quer como companhia, pra escolher estar com aqueles que não me cobram por responsabilidades que não são minhas e nem me elegem como tábua de salvação.

Sou livre pra viver minha arrogância, minha chatice, meu mal humor e minha rudeza com aqueles que são capazes de me ajudar a comer um saco de sal, até sua última pedrinha! Porque, depois do sal, virá o afeto. E esse será sempre verdadeiro. 

(Imagine-se comendo um saco de sal! Mas coma um saco grande. Daqueles de 50 quilos. Convide alguém pra dividir com você essa iguaria em banquete exclusivo. Ninguém aceitará o convite. Virão apenas os que te amam. Eles dividirão com você esse maléfico banquete. Dê valor a eles!)

Meus parceiros do saco de sal serão, doravante, os beneficiados com minha calma e doçura. Com minha paciência e compreensão, com minha parceria e cumplicidade. Porque são minha fonte de calor e esperança renovada.

Meu pulmão me salvou. Filtrou, arejou, renovou meu sangue.

Descartei muita coisa nestes 7 dias. Descartei memórias insalubres que deixarei trancafiadas neste quarto de hospital... Prezo minha liberdade e tudo o que aprendi com a privação dela nestes 7 dias.

Sou livre pra voltar pra casa, limpa, arejada, renovada e feliz da vida, porque o Dodô vem me buscar já, já. E lá vamos nós, começar tudo de novo. Outra vez!

Às memórias maléficas que deixei trancafiadas naquele claustro, obrigada pela companhia. Vocês cumpriram seu papel. Foram 7 dias de libertadora solidão.

Liberdade é um bem maior do que a saúde!

Não à toa a punição com a morte é menos cruel do que o isolamento.

Ser livre é bom. Mas requer coragem. E isso eu tenho, de sobra.

Foi bom. Passou.
Saio maior do que entrei.






4 comentários:

  1. Tania, foi privilégio cuidar de você. E principalmente conhecer você. Tempos de hospital são tempos difíceis, mas pra quem se permite, costumam ser divisores de águas. Sempre saímos diferentes. Podemos escolher sair maiores e melhores. Grande beijo.

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  2. O que vc teve? Pq estou com esse catarro de bolinha a uns três meses, com tosse, dor, chiado e nunca tinha visto catarro assim. Estou tentando achar no Google, mais só vi sua postagem.

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    1. Olá! desculpe mas somente agora vi seu comentário! eu tive um broncoespasmo de fundo alérgico. nenhum medicamento ajudou muito. o que me ajudou foi a fisioterapia respiratória porque desenvolvi uma asma. E você, está bem?

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