terça-feira, 13 de agosto de 2019

Porta morta


Na madrugada silenciosa ouço apenas o som dos geradores, vindo da janela que fica do lado esquerdo da minha cama.

Chamo de janela, mas, de fato, é uma porta-balcão, originalmente instalada para abrir para a sacada, pequena, retangular, voltada para a lateral do prédio, de onde posso avistar um pequeno vale complementado por uma suave elevação de relevo. Toda a geografia é adornada por prédios, interligados pelo asfalto, com ilhotas verdes, levemente arborizadas, iluminadas pela luz amarela de lâmpadas de iodo. Exatamente à frente da minha janela, no lado oposto do vale, no alto da colina, avisto o Complexo Hospitalar Mário Covas.

O céu, indeciso, ainda não sabe se é hora de clarear. Lentamente começa a mudar de cor. Vejo a cidade tentando despertar.

Vejo isso pela transparência da porta de vidro.
É uma porta. Mas foi trancada!

- De que serve uma porta trancada? 
- Aqui, na minha sacada, serviu para transformar-se em janela.
- Mas, originalmente, uma porta deveria servir para dar passagem. Uma possibilidade. Uma opção.
- Mas, está trancada!

Seria uma porta de duas folhas. Mas as folhas permanecem imóveis e inertes, fixas e resistentes, apesar do insistente giro que imprimo na maçaneta.
Não é mais uma porta. É uma janela. Apenas. Ficou inutilizada por força de um bloqueio deliberado: alguém decidiu que seria melhor trancá-la! E deixá-la ali, inerte e tolhida de sua função original. Normas de segurança justificam a decisão
Não é mais uma porta. Agora é, apenas, uma janela.

- Mas, não há beleza e poesia nas janelas?
- Claro que há: através das transparências as janelas sugerem possibilidades. Sugerem pontos de observação. Arejam, iluminam, ventilam.
- Sugerem?
- Sim, sugerem!
- E, de que vale a sugestão se a possibilidade de realizá-la está trancada pela porta, cuja maçaneta não gira e, as chaves, não se sabe onde estão?
- Elas arejam, oras.
- Não arejam, nada! Não o fazem sozinhas. É o ar que areja através delas.
- Olha bem: elas iluminam!
- Não iluminam, não! Não têm esse dom. Sem que a luz decida vir e passar por elas, reina a escuridão, como agora. Nenhuma luz adentra por esta janela!
- Ah, vá! Ventilam, ao menos...
- Quê? Ventilam nada! Paralisem a brisa e imobilizem o vento! De que servirá a tal janela?

Servirá para nos lembrar da passagem que teria sido, se fosse uma porta. Se estivesse destrancada, passível de ser aberta. Se a decisão deliberada de alguém não lhe tivesse amputado uma de suas funções: abrir-se para a sacada.

- Sem a brisa fresca, sem o mover do ar, sem o circular constante e alternado entre quente e frio, de que nos serve uma janela? 
- Serve, apenas, pra nos mostrar o que nos falta! 

Fecho imediatamente o vidro da janela. 
- Ar? De que me faz falta o ar? Não faz! Se não o tenho, não me falta.

Faltaria se o tivesse e não o pudesse usar. Se não o tenho, não é meu, não me falta. Fico sem! Sem ar não preciso nem de frestas, que dirá janelas. Fecho. Pronto. Agora é apenas vidro. Superfície fria de um quadro. Plano, transparente, translúcido, que, sem luz, torna-se invisível. Nem está mais lá. Pronto. Acabou!

Fecho a cortina e cubro a janela. É madrugada. A luz do dia ainda não pediu passagem. A escuridão da rua é tapete negro, salpicado por luzes artificiais. Tapete que camufla o chão, num mimetismo de céu de estrelas. Tapete imaginário, chão escondido, luz de gerador. Um céu com som de gerador. Com luz de gerador. Com cor amarela e quente, aquecida pelo motor do gerador, que aquece o ar, que amarela as sombras. Era o que se via desta porta trancada, antes que eu a cobrisse para que deixasse de ser janela.

Viam-se só mentiras: uma rua que nem é tapete. Um chão de camuflagem. Uma estrela de gera-dor. Triste!

Trancada ficou a porta. Depois, vi a porta virar vidro. Plana. Lisa e sem arejar. Não ilumina nada porque a luz ainda não chegou com o beijo do despertar.

Sem a luz ela era apenas um quadro que ganhou moldura. Permaneceu sem vida. Enquadrado, reduzido, limitado. 

Estática e inútil tornou-se a janela, assim como morreu a porta com sua fechadura trancada. Ela jamais se move, apesar do insistente giro na maçaneta.

Porta morta. Ex-janela. Atual moldura.

- Que bom que existem as cortinas. De que me serve uma janela que não areja, nem ilumina? Melhor não vê-la.
- Mas, ainda poderia ventilar!
-Já te disse, janela não ventila. Quem ventila é o vento... 

Ele é brincadeira de pega-pega entre ar quente e ar frio. Um vvvvai... Outro vvvem... E ao passarem um pelo outro, em fuga, que é encontro; esbarro, que é afago,
 deixam seus rastros, nos sopram a pele e deixam em nós aquela sensação de "úi, passou": "Vvvvvummm"... "vvvvvvumm"... "..."

- É ele, o vento.

Ele passaria pela janela se não houvesse a cortina. Se, antes de fechada a cortina, a janela não tivesse virado moldura. Se, antes de tudo, continuasse viva, como porta. Mas estava morta. Não era, nem nunca fora, janela. Não era quadro. Não era nada. Estaria, à partir de agora, coberta por uma cortina mortuária. Tornou-se uma porta morta.

- Portas trancadas morrem!

A porta virou janela, virou moldura, virou vidro inerte. É agora líquido, que escorrerá por milênios e que, jamais, não amolecerá. Escorrerá, deformará, ficará disforme. Quebrará, até. Quem sabe? Sei que nunca mais brincará de pega-pega com o vento.

Foi melhor cobrir a janela. Esquecer dela.
Janela, não, Porta Morta! Portas trancadas não servem nem mesmo pra virar janelas.

É melhor não tê-las.

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