quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Dia 10 — Infidelidade

Diário da CPTM
365 dias de uma passageira
16/11/2016

Para: Maurício, 
Sueli, 
Heloísa,
Alline,
Dayse, 
Luciana, 
Alfredo
 E demais colegas da Serra do Japi...


Hoje preciso relatar um caso de infidelidade!
Para tanto contextualizarei brevemente o cenário dos fatos.
Nasci e cresci em Ribeirão Pires, uma cidadezinha da região metropolitana de São Paulo, cortada, literalmente, pela ferrovia: a antiga Estrada de Ferro Santos - Jundiaí.
Placa Original de Identificação
Sim, nos meus tempos de infância era possível embarcar em um trem em Santos e desembarcar somente em Jundiaí,  numa viagem linda, que perpassava paisagens diversas, desde a Serra do Mar até a Serra do Japi,  onde ficam as extremidades da antiga ferrovia, respectivamente, as cidades de Santos e Jundiaí.
A estrada de ferro, àquela época, pertencia à RFFSA, Rede Ferroviária Federal S/A, a quem coube gerir todas as estruturas da malha ferroviária construída pela São Paulo Railway Company, que durante os idos de 1800 tratou de rasgar as terras paulistas, fincando trilhos sobre o chão, cruzando o estado, num dos maiores processos de integração litoral-planalto deste estado, desde o tempo dos Bandeirantes.
Instalação dos trilhos pela São Paulo Railway Company
A viagem de trem era um acontecimento. Os trens, nos moldes dos trens ingleses, tinham bancos estofados, com encosto basculante. Desta forma era possível aos passageiros alterar a o sentido da observação da paisagem apenas baldeando e invertendo o lado do encosto.
Até hoje é possível ver sinais do estilo Inglês nas estações da linha Turquesa, pertencente à malha ferroviária da CPTM.
Visão Atual
Aliás, acho importante frisar: a malha ferroviária paulista é a mesma desde o tempo dos Ingleses.
A despeito de todas as mudanças operacionais feitas pela CPTM, nenhum metro de trilho ferroviário foi fincado depois dos Ingleses, lamentavelmente.
E o pior: a malha ferroviária virou uma confusão só.
Hoje em dia não existe mais o trem para Santos. A linha foi desativada por absoluta falta de conservação. Atualmente trafegam somente os trens de carga, no percurso que compreende as estações de Rio Grande da Serra, Paranapiacaba e Santos. 
O percurso Santos-Jundiaí, então, virou um quebra-cabeças de 1500 peças. Herói é o cidadão que consegue fazer o percurso e chegar ao seu destino no horário desejado. Aliás, nem o percurso existe mais. Hoje somente é possível trafegar entre Rio Grande da Serra e Jundiaí.
Perdemos todo o percurso da Serra do Mar, lamentavelmente, para os passageiros habituais e para os turistas.
Moro em Ribeirão Pires e vou a Jundiaí semanalmente. A cada quinze dias faço esse percurso duas vezes na semana.
Se fosse de trem, nos idos da RFFSA, embarcaria em Ribeirão Pires e desembarcaria em Jundiaí.
Visão atual - Estação Jundiaí

No meu embarque, eventualmente, já estariam dentro do trem passageiros advindos das cidades de Santos, Paranapiacaba, Rio Grande da Serra, rumando em direção ao interior. 
Hoje isso é impossível: a malha ferroviária perdeu as estações de Santos e Paranapiacaba como polos de embarque de passageiros, num claro encolhimento da malha ferroviária implementada pelos Ingleses.
Agora, em tempos de CPTM, para fazer o mesmo percurso, na mesma linha, com duas estações a menos, um passageiro qualquer precisa transitar por 3 linhas férreas diferentes: a Turquesa (10), a Coral (11) e a Rubi (7), com direito a 3 baldeações, sendo uma delas ligando a Linha 7-Rubi à... própria linha7-Rubi, numa demonstração clara dos avanços trazidos ao passageiros pela "operacionalização" das linhas promovida pela CPTM.
Os nomes das linhas são uma carinhosa menção às gemas preciosas brasileiras, como se a carga levada pela CPTM, os passageiros, para eles, tivesse algum valor...
mapa da Rede - CPTM 2016
Custo a crer que esta alteração operacional facilite a vida de alguém.
Mas tenho certeza absoluta de que ela somente acontece para compensar a falta de investimentos na malha ferroviária, para mim, o meio de transporte de passageiros (e cargas também) mais inteligente já inventado pelo homem!
Bem, resumindo: perdemos a visão da paisagem, aumentamos o tempo de deslocamento, aumentamos o desgaste dos passageiros, inviabilizamos parcialmente o uso da ferrovia como meio de transporte habitual para aqueles que querem transitar do litoral para o planalto.
Isso porque estou falando do deslocamento de Ribeirão Pires à Jundiaí. De Santos a Jundiaí, então, ficou inviabilizado o deslocamento sem a intervenção do transporte rodoviário.
E aí começa minha história de infidelidade...
Meu percurso semanal até Jundiaí é feito pela Rodovia Bandeirantes, já que o trajeto pela ferrovia demandaria mais tempo do que o ideal.
O nome da rodovia é uma homenagem aos desbravadores do sertão paulista, que saíram cortando terras, matando e desalojando índios, em nome do progresso do estado, da expansão de fronteiras do país e da busca por riquezas.
Esta busca por riquezas desconsiderou o elemento humano, para o qual deveriam convergir as riquezas conquistadas.
Como também foi desconsiderado o elemento humano na opção pela adoção do transporte rodoviário, em detrimento do transporte ferroviário.
O transporte rodoviário surgiu como propulsor da economia, mas essa propulsão desestruturou toda a distribuição de riquezas, que deveriam subir a serra de trem e ganhar o interior.
Eu moro na serra mas com frequência vou ao interior. 
Nesta minha ida, depois da metade do caminho, pratico minha infidelidade semanal.
Tenho este encontro marcado há anos. Com dia e hora certas para acontecer.
É um encontro fortuito, dura apenas alguns minutos e acontece, CPTM, por culpa tua!
Vou até ele, entro, me acomodo, espero a paisagem mudar de ares e de cores.
Hoje foi este dia.
CPTM, hoje, como faço há anos, eu te traí!  



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