segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Dia 8 — Tiracolo

Diário da CPTM
365 dias de uma passageira
14/11/2016


Você conhece um novato no transporte coletivo pela forma como carrega a bolsa.
Disse isso um dia desses porque fui vitima de uma bolsada...
Eu, sentada no banco duplo, lateral ao corredor, com meu ombro à mercê de quem parasse ali ao lado...
Ao meu lado, em pé, para uma moça. Bem vestida, maquiada, penteada, arrumada de forma inusual para o transporte coletivo matutino.
O público madrugueiro normalmente usa roupas práticas, ostenta poucas, ou quase nenhuma joia, acaba de se arrumar no próprio trem. Os homens tomam o cafezinho em pé, demonstrando que saíram de casa às pressas quando o café ainda não estava pronto. O "buteco" da esquina os socorre diariamente e os copinhos descartáveis repousam no peitoril da janela após o desembarque, para desgosto das funcionárias da Faísca (empresa de limpeza que revisa os vagões no ponto final).
As mulheres fazem a maquiagem durante a viagem (habilidosamente seguram o espelho apoiado na palma da mão, fixado pelos dedos mínimo e anular, apoiados no polegar, e o rímel fica preso entre os dedos médio e indicador, como se fosse um cigarro. Com a outra mão pintam cuidadosa e "caprichadamente" os cílios, sem borrar nada, nadinha.... Manobra que exige anos de vagão e alguma habilidade).
Mas, a moça em pé ao meu lado estava pronta! E carregava uma maldita bolsa bege à tiracolo!
Aquela bolsa, já na chegada, ralou minha orelha esquerda. Permaneci sentada mas com o pescoço levemente deslocado para a direita, protegendo minha pobre, minúscula e bem desenhada orelhinha das investidas da bolsa bege.
Não adiantou. Alguns minutos depois a bolsa escorregou dos ombros da moça e sentou sobre meu ombro esquerdo ( meu lado esquerdo não tem tido muita sorte ultimamente...). O peso da bolsa sobre meus ombros foi desagradável, mas não foi traumático. O trauma veio quando a moça decidiu reconduzir a bolsa aos seus próprios ombros. Puxou a alça bruscamente e quase levou minha pobre orelhinha junto, porque a bolsa tinha uma lombada costurada que resolveu encaixar na minha orelha durante a subida....
Olhei feio para a moça que, de tão desajeitada me inspirou pena.
Ela realmente não era do ramo! Acho que estava estreando na CPTM.
Não sabia se segurava no balaústre, se se apoiava no cano vertical, se confiava nas leis da física e deixava inércia e gravidade manterem-na em pé.
Enfim... meu ombro e minha orelha, calejados por décadas de CPTM, estavam até que bem, diante do quadro vivido pela moça.
E a bolsa seguiu viagem encostada na minha orelha, apoiada sobre meu ombro, deixando minha cabeça levemente inclinada para a direita.
Eis que toca o celular. Bem no meu ouvido.
O celular, dentro do bolsinho externo da bolsa bege, de propriedade da novata na CPTM, resolveu tocar em volume máximo, bem dentro da minha pobre orelhinha esquerda, já martirizada, após 5 estações de negociações com a bolsa, com a moça e sua estreia na linha Turquesa.
— Alô! Oi, tudo bem? ..... Sim, no trem..... não sei quanto tempo... Na Estação Prefeito Celso Daniel.... No Brás.... Sim, no Brás.... Ah, não sei quanto tempo demora.... Poderia ser Tamanduateí, mas não sei fazer a baldeação, então vou pro Brás que a Meire me encontra lá..... Ah, tô nervosa, né?..... Ai, se eu passar vou ter que pegar esse maldito trem todos os dias..... Ah, fazer o que, né, agora fiquei sem grana!.... claro que é pouco, mas viver só da pensão não vai dar.... Depois te conto como foi a entrevista.... Beijo!
Não ouvi o que dizia o interlocutor(a), mas intuí todas as perguntas que foram feitas....
Recém-separada, com dificuldades financeiras, estava arrumada para a entrevista de emprego e já reclamava do trem. Não sabia quanto tempo demoraria a viagem, não sabia chegar no lugar da entrevista e, como minha orelha pôde bem confirmar, não sabia nem carregar uma bolsa à tiracolo!
Fala sério, lindeza!
Você, novata, esculachando logo de cara o "linguição-de-ferro" que me leva e me traz todos os dias, quase rasgando minha orelha, abusando da paciência dos meus ouvidos com seu celular estridente, ainda vem posar de dondoca depois da falência do casamento desfeito?
Ah, não! É demais!
Fui calada, suportando a bolsa bege sobre o ombro. Chegando no Brás pedi licença, me levantei, cedi o lugar como se estivesse fazendo uma grande gentileza e disse: CPTM é só para os fortes.
Ela sorriu e se sentou. Acomodou a bolsa bege no colo e desceu por último, pois não havia percebido que ali era o ponto final.
Foi avisada pela funcionária da Faísca...
CPTM, estamos vingadas!

Nenhum comentário:

Postar um comentário